A justiça perfeita é injusta

Mais um artigo defendendo o “juiz de garantias”. Fui ler, claro, em busca de luz. Saí, como sempre, de mãos vazias.

Em primeiro lugar, tentei abstrair do fato de o artigo ter sido escrito por um advogado do escritório Mariz Oliveira, um dos preferidos dos endinheirados encrencados com a justiça. O fato de sua opinião estar claramente conflitada com seus interesses não me deveria impedir de analisar o mérito de suas colocações. Fui ler então.

O artigo não traz nada de novo. O único argumento é velho conhecido: o juiz que preside o inquérito já está enviesado pelas provas colhidas e tenderá a fazer um julgamento parcial. Um novo juiz, sem conhecimento prévio do inquérito, tenderia, portanto, a ser mais parcial. Procurei, em vão, o contraponto ao óbvio contra-argumento a esse raciocínio: há justamente uma 2a instância, com não um, mas 3 juízes que desconhecem previamente o inquérito, garantindo, então, a total imparcialidade da justiça. Pra que, então, criar a instância 1,5, entre a 1a e a 2a instâncias, a não ser para atrasar o processo?

Mas não é a falta de argumentos que me irrita nesse tipo de artigo, nem o óbvio conflito de interesses. O que realmente me tira do sério é a premissa universal utilizada para chegar a conclusões particulares. Quem, afinal, seria contra uma justiça imparcial? Ninguém, certo?

Então, e aí está a malandragem, todo mundo deveria ser a favor do juiz de garantias. É como perguntar se alguém seria contra a que todos tivessem uma saúde perfeita e execrasse, então, quem fosse contra a adoção obrigatória de dois médicos em cada posto de saúde do país, sem olhar para a viabilidade do projeto.

Ninguém é contra uma justiça imparcial, assim como ninguém é contra um atendimento de saúde de primeira linha. Mas, assim como não existe saúde perfeita, também não existe justiça perfeita. Existe a justiça possível. Em tese, um 2o médico no posto de saúde aumenta a chance de curar uma doença. Somente em tese. Na prática, pode significar a morte do paciente, que fica na fila de espera para ter a 2a opinião “não enviesada” pois não há médicos suficientes.

O juiz de garantia, somente em tese, garantiria uma justiça mais imparcial. Na prática, a sociedade brasileira vai morrer na fila, esperando pela condenação na instância 1,5, criada para criar a “justiça perfeita”, mas que terá o efeito justo oposto, para satisfação dos escritórios dos criminalistas.

Mais uma filigrana jurídica

Reportagem no Estadão hoje traz uma entrevista com a juíza corregedora Patrícia Alvarez Cruz, responsável pelo DIPO – Departamento de Inquéritos Policiais, do Tribunal de Justiça de São Paulo. O DIPO vem sendo citado por Toffoli e vários outros como um modelo de como funcionaria o tal “juiz de garantias”.

A juíza simplesmente demoliu essa ideia na matéria. Diz que o DIPO foi criado para agilizar os processos e não para substituir a avaliação que o juiz do caso deve fazer para tentar alcançar a verdade dos fatos. Chega a dizer que o número de absolvições deve aumentar com o estabelecimento do juiz de garantias, não por uma suposta imparcialidade do juiz, mas porque este ficará em sincera dúvida, pois não terá acesso aos autos do inquérito policial.

Além disso, acrescento eu depois de ler a reportagem, a competência do juiz será mais uma filigrana a ser habilmente explorada por criminalistas pagos a peso de ouro. Se uma formalidade como a ordem das alegações finais já serviu para o STF anular sentenças, imagine algo mais grave como a avaliação de se o juiz do caso agiu ou não dentro de suas fronteiras.

Fica a conclusão de que o tal “juiz de garantias” foi criado para garantir a impunidade. Vale a leitura.

A seletividade da lei

Todos aqui são testemunhas de como não gostei do tal “juiz de garantias”, que, na minha visão, é a criação da 5a instância no judiciário brasileiro. Mas o que Toffoli fez é inacreditável! Ele, monocraticamente, mudou uma lei clara e cristalina aprovada pelo Congresso brasileiro, selecionando que tipo de crimes não terão o juiz de garantias! Ora, ou bem ele declara a lei inconstitucional, ou declara constitucional. Não cabe ao STF escolher onde a lei vale e onde não vale, isso é prerrogativa do Congresso. Afinal, que dispositivo constitucional teria sido violado pelo juiz de garantias em casos de homicídios e não em casos de corrupção?

A justificativa dada a jornalistas é ainda mais espantosa. O juiz de garantias não valeria para homicídios porque esses casos precisariam de um “procedimento mais dinâmico”! Ora, é a confissão mais deslavada de que o instituto do juiz de garantias servirá para embolar os processos, tornando-os ainda mais morosos. Não consigo pensar em prova mais definitiva de que essa história do juiz de garantias foi feita sob encomenda para tornar mais fácil a vida dos corruptos com bolsos fundos.

Queremos entrar na OCDE. Desse jeito, vai ser difícil.

A estratégia inverossímil do governo

Bons e ponderados pontos levantados pelo amigo Victor H M Loyola, sobre as possíveis “explicações” para o não veto do juiz de garantias. A terceira, a única que ele considera plausível, caiu por terra com a informação de que Toffoli deu o seu aval para o troço. E Toffoli certamente está bem acompanhado no Supremo nesse ponto. De modo que, quem está esperando que alguma ADIN prospere, pode esperar sentado.

Ainda sobre o jabuti do juiz de garantias, plantado pelo Freixo/Paulo Teixeira no pacote anti crime do Moro, que não foi vetado por Bolsonaro, e gerou grande irritação entre sua base de apoio, li alguns contrapontos defendidos pelos governistas, dos quais somente um merece credibilidade.

– O primeiro contraponto é que se trata de uma boa ação. Para os defensores dessa tese, nem tudo que é proposto pela esquerda é ruim e essa seria uma das boas ideias. Esses em geral foram os apoiadores de primeiro momento, para os quais qualquer ação do presidente se justifica. A medida em si é péssima, tornaria o sistema judiciário ainda mais lento e custoso. Apoiá-la é algo esdrúxulo, a menos que você seja um psolista, petista ou similar;

– O segundo contraponto seria de que tal medida não iria alterar muito a estrutura do judiciário e que Bolsonaro estaria dando um exemplo à esquerda de que seu governo atende às demandas democráticas e não é autoritário. Essa teoria vai por água abaixo em todas as frentes, primeiramente por que a medida, se implantada, causaria um grande transtorno ao Judiciário. Em segundo lugar por que Bolsonaro nunca se incomodou com o ‘feedback’ de esquerdistas e jamais pensou em conquistar votos da banda de lá, pois isso é absolutamente impossível de acontecer;

– O terceiro contraponto é uma teoria plausível. Como tal medida é inconstitucional e será fatalmente julgada como tal, Bolsonaro teria preferido jogar o abacaxi no colo de quem a pariu, no caso, o Congresso. O problema é que ao fazer isso ele desagradou parte importante de sua base de apoio e não conquistou simpatia de um mísero antibolsonarista, nem no Congresso, tampouco entre os eleitores. E se ao final do dia, tanto vetar quanto não vetar a medida não faria diferença pelo fato dela ser inconstitucional, por que não manter a coerência e vetá-la, tal qual ele fez com outras 25 emendas do mesmo pacote anticrime?

Para os que consideram esse terceiro ponto um primor de estratégia eu faço algumas perguntas:

– Que força teriam Freixo e o PT no a Congresso para impor sua vontade? De que adianta passar de flexível com esses interlocutores? A oposição tem sido surrada ao longo do ano, não me parece que uma medida como essa teria o poder de arregimentar deputados de várias colorações;

– Se a medida será considerada inconstitucional, por que alimentá-la com debates inúteis ao invés de se posicionar com coerência? Por que preferiu agradar a uns gatos pingados e desagradar boa parte de seus simpatizantes?

São perguntas em aberto que desafiam o terceiro contraponto, que considero uma teoria crível. Mesmo que ela seja verdadeira, a atitude do presidente me desagradou. Não somente a mim, como a tantos outros, inclusive muito mais defensores do governo que eu. Sinceramente, se foi realmente uma estratégia, questiono a sua efetividade.

Agora nos resta torcer para que esse jabuti caia da árvore. Nossa justiça já é extremamente custosa e lenta.

“Não vota mais em mim”

Não faço parte do “bando de internautas constitucionalistas e juristas” que estão criticando a falta de veto ao juiz de garantias. Não entendo nada disso. Mas o grupo Prerrogativas entende. E estão comemorando. Para mim, é o que basta.

Sim, o juiz de garantias vai me prejudicar, na medida em que introduz uma 5a instância no combate ao crime, em uma já morosíssima justiça. “Não vota mais em mim”. Ok.

A agência TASS do bolsonarismo

A antiga União Soviética contava com uma agência de notícias oficial, a TASS. Obviamente, todas as notícias eram pró-regime. Mesmo diante de fatos negativos, os bravos editores da agência não se deixavam intimidar. Tudo, absolutamente tudo, se dava de acordo com os planos do Kremlin. A piada que corria é que a explosão de um foguete soviético seria noticiada assim: “o foguete XYZ explodiu em sua base de lançamento rigorosamente conforme o planejado. Os engenheiros comemoraram o sucesso da missão”.

Ao ler por aí as justificativas para que Bolsonaro não vetasse o juiz de garantias, não consegui deixar de lembrar da agência TASS.