Os judeus estão sozinhos

Reportagem de página inteira fala hoje sobre a suposta violência (com licença, vou usar aqui a palavra “suposta”, dado que o editor não teve esse cuidado para descrever uma situação que se desenvolve no domínio das narrativas) de colonos judeus contra árabes na Cisjordânia. Aqui, é provável que haja violência sim, em um ambiente claramente deteriorado de inseguranca, assim como é possível que haja simpatizantes do Hamas entre os moradores do território. Mas o ponto desse post é outro.

Note a palavra “ativistas” na linha fina da manchete. Seriam “ativistas” árabes? Seriam “ativistas” da Anistia Internacional ou qualquer outra dessas ONGs supostamente (olha a palavra “suposta” novamente aí) neutras que pululam por aí? Nada disso. Trata-se da B’Tselem, uma ONG ISRAELENSE de defesa dos direitos humanos. Sim, amigos, não são observadores da ONU ou de algum país árabe que estão lá na Cisjordânia para denunciar a suposta violência dos colonos contra os árabes.

Lanço aqui um desafio: encontre organizações árabes de direitos humanos que tenham condenado a carnificina do Hamas. Boa sorte!

Mesmo no caso de condenações dos atos do Hamas, o “mas” abundou, como pudemos constatar no infame discurso do secretário geral da ONU. Por outro lado, a condenação dos colonos judeus na Cisjordânia pelo B’Tselem se deu sem um “mas” na frente, que lhes pudesse dar alguma desculpa plausível para o que supostamente estão fazendo. No caso, é maldade pura dos colonos, que justifica atos como os do Hamas.

Não, você não vai encontrar “ativistas de direitos humanos”, muito menos árabes, defendendo o direito de Israel defender-se de quem quer nada menos do que eliminá-lo do mapa. Mas sim, você verá judeus de extrema-esquerda, ativistas israelenses, estudantes da Ivy League, o secretário geral da ONU, a grande imprensa e, claro, os principais mandatários árabes, defendendo o direito de Israel ficar no seu canto aguardando o seu destino. Como disse minha mãe outro dia (e ela está longe de ser ortodoxa), os judeus estão sozinhos. Como sempre.

O busílis da questão árabe-israelense

“Os ataques do Hamas não ocorreram no vácuo”.

Essas foram mais ou menos as palavras do secretário geral da ONU, Antonio Guterrez, procurando contextualizar (evitarei aqui o verbo “justificar”) as atrocidades cometidas pelo Hamas. Este é, em diversas versões, o cerne da questão: Israel estaria apenas pagando o preço pelos seus crimes. O Hamas pode ter exagerado “um pouquinho”, mas Israel, no final das contas, mereceu o castigo. E os atos do Hamas serviram como uma fagulha na palha seca do ressentimento contra Israel.

A narrativa é muito simples: os judeus são um povo perverso, que pratica “genocídio” e “apartheid”, e mantém os palestinos em uma “prisão a céu aberto”, por pura ganância e maldade. Não há outra explicação para a mortandade de crianças agora mesmo em Gaza. Vejam como esses judeus são maus, nos esfregam em nossas caras as manchetes do noticiário diário e os comentários dos “especialistas”. Obviamente, tudo isso está implícito, nada é explícito. Nem precisa.

Mas o que é convenientemente esquecido é que a história não começa por essas ações de Israel. Se há um início nessa história, é a negação do direito de existência do estado de Israel por parte de uma parcela dos árabes e de muitos intelectuais no Ocidente, a tal “esquerda global”. Este é o verdadeiro busílis, tudo tem início nesse pecado original.

O ponto é que Israel tem o direito de se defender dessa parcela radical de árabes que não reconhece o seu direito à existência e fará de tudo para atingir o seu objetivo (vide o ataque de 07/10). Vejo muitos no Ocidente e mesmo judeus justificando o que o Hamas fez, mas não vejo ninguém no mundo árabe apoiando o direito de Israel defender a própria existência. Pelo contrário, Mahmoud Abas, o palestino “moderado”, aplaudiu o Hamas em um primeiro momento, assim como as principais lideranças do mundo árabe. Então, Israel está à pé, e precisa se defender sozinho, com o apoio de uma parcela do Ocidente.

Israel bloqueia Gaza? Ficou claro porque, depois dos ataques de 07/10. Israel controla a Cisjordânia? Ficou claro porque, depois dos ataques de 07/10. Israel “humilha” os árabes com procedimentos de segurança? Ficou claro porque, depois dos ataques de 07/10. Há aqui uma inversão de causa-efeito: não foram os ataques de 07/10 que ocorreram por causa da “opressão” israelense. É a “opressão” israelense que existe porque um ataque da natureza do que ocorreu no dia 07/10 sempre foi uma possibilidade concreta. E por que? Volte dois parágrafos: por causa da negação do direito de Israel existir. Este é o pecado original.

Todos os que, com o coração pesado, suplicam para que Israel pare de bombardear Gaza e comece a tratar os árabes da região com dignidade, fariam melhor uso de seu tempo e de suas energias suplicando ao Hamas e seus congêneres a aceitarem a existência de Israel. Enquanto isso não acontecer, duvido da boa intenção desses “bons moços”.

Sim, a situação dos árabes de Gaza e da Cisjordânia é lamentável e triste, muito triste. Mas não culpe Israel, que está somente em meio a uma luta vital pela sua sobrevivência, e usando todos os meios a seu alcance, como qualquer um faria para defender a própria vida. Culpe antes os árabes radicais e os bons moços do Ocidente, para quem o mundo seria melhor sem Israel. E, podem estar certos, Israel não vai morrer sem lutar.

A liberdade de expressão em tempos de guerra

A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia moderna, e o debate sobre a tolerância à livre expressão de ideias não democráticas é um dos tópicos mais quentes do debate sobre o tema.

No entanto, a coisa muda de figura quando uma democracia está em guerra. Lembro de um filme, “Adeus a Manzanar” (gostaria de assistir de novo), que conta a história de Manzanar, um campo de confinamento de japoneses em território americano durante a 2a Guerra. Os descendentes de japoneses, cidadãos americanos, foram despidos de seus direitos civis pelo simples fato de terem alguma ligação com o então inimigo. No caso, não se tratava nem de liberdade de expressão, mas de liberdade de movimento, o que é ainda pior.

Essa lembrança me veio a propósito da proibição do governo israelense de manifestações pró-Palestina em Israel. Alguém poderia pensar que se trata de uma contradição um país que se diz democrático proibir a livre manifestação do pensamento. Ocorre que Israel está em guerra, e durante a guerra, as leis são outras. Que o digam os japoneses de Manzanar. Não estou aqui dizendo que está certo ou errado, estou apenas chamando a atenção para a diferença entre tempos de paz e tempos de guerra.

Israel é a única democracia plena do Oriente Médio. Lá, em tempos normais, todos podem postar o que quiserem em suas redes sociais sem serem molestados por isso. O mesmo não se pode dizer de seus vizinhos árabes. Em tempos de guerra, no entanto, Israel se reserva o direito de não permitir o fomento de animosidades contra si mesmo, de pessoas que usam as prerrogativas democráticas para levantar a bandeira do inimigo. Na guerra, o inimigo é mantido fora do país, não dentro. Não por outro motivo, o porta-voz da polícia israelense sugeriu encher um ônibus para Gaza com todos os apoiadores do Hamas. E que fique claro que dizer que o Hamas tinha motivo para fazer o que fez, no contexto e no lugar em que é dito (dentro de Israel), é o mesmo que apoiar o Hamas. A democracia, durante a guerra, tem suas próprias regras.

A narrativa da decolonização é perigosa e falsa

O amigo Eduardo Trajano indicou-me um artigo escrito por Simon Sebag Montefiore sobre o tema da “colonização opressora” israelense. Montefiore é um jornalista e historiador britânico, autor dos livros “Stalin: A Corte do Czar Vermelho” e “Jerusalém: A Biografia”. Li ambos e recomendo.

Bem, esse artigo é longo, mas é definitivo. Tão definitivo, que decidi traduzi-lo e colocá-lo aqui na minha página, pois acho a sua leitura obrigatória. Para quem quiser ler no original, é só clicar aqui.


A narrativa da decolonização é perigosa e falsa

Ela não descreve com precisão nem a fundação de Israel e nem a tragédia dos palestinos.

Por Simon Sebag Montefiore

The Atlantic – 27/10/2023

A PAZ NO CONFLITO ISRAEL-PALESTINA já era difícil de alcançar antes do bárbaro ataque do Hamas em 7 de outubro e da resposta militar de Israel. Agora parece quase impossível, mas sua essência está mais clara do que nunca: em última análise, uma negociação para estabelecer um Israel seguro ao lado de um Estado palestino seguro.

Quaisquer que sejam as enormes complexidades e desafios para concretizar este futuro, uma verdade deveria ser óbvia entre as pessoas decentes: matar 1.400 pessoas e raptar mais de 200, incluindo dezenas de civis, foi profundamente errado. O ataque do Hamas assemelhou-se a um ataque mongol medieval para matança e obtenção de troféus humanos – exceto pelo fato de que foi gravado em tempo real e publicado nas redes sociais. No entanto, desde 7 de outubro, acadêmicos, estudantes, artistas e ativistas ocidentais negaram, desculparam ou mesmo celebraram os assassinatos cometidos por uma seita terrorista que proclama um programa genocida antijudaico. Parte disto está acontecendo abertamente, parte por detrás das máscaras do humanitarismo e da justiça, e parte em código, o mais famoso sendo “do rio ao mar”, uma frase assustadora que endossa implicitamente o assassinato ou a deportação dos 9 milhões de israelenses. Parece estranho que se diga: matar civis, idosos e até bebês é sempre errado. Mas hoje é preciso ser dito.

Como podem pessoas instruídas justificar tal insensibilidade e abraçar tal desumanidade? Estão em jogo aqui todo tipo de coisas, mas grande parte da justificativa para matar civis baseia-se em uma ideologia em voga, a “decolonização”, que, tomada pelo seu valor de face, exclui a negociação de dois Estados – a única solução real para este século de conflitos – e é tão perigoso quanto falso.

SEMPRE ME PERGUNTEI sobre os intelectuais de esquerda que apoiavam Stalin, e aqueles simpatizantes aristocráticos e ativistas da paz que desculparam Hitler. Os atuais apologistas do Hamas e negadores das atrocidades, com as suas denúncias robóticas do “colonialismo dos colonizadores” pertencem à mesma tradição, mas pior: têm provas abundantes do massacre de idosos, adolescentes e crianças, mas, ao contrário daqueles tolos da década de 1930, que lentamente chegaram à verdade, eles não mudaram seus pontos de vista nem um pouco. A falta de decência e respeito pela vida humana é surpreendente: quase instantaneamente após o ataque do Hamas, uma legião de pessoas subestimou o massacre, ou negou que atrocidades reais tivessem acontecido, como se o Hamas tivesse acabado de realizar uma operação militar tradicional contra soldados. Os negacionistas do 7 de outubro, tal como os negacionistas do Holocausto, vivem em um lugar especialmente sombrio.

A narrativa da decolonização desumanizou os israelitas ao ponto de pessoas de outra forma racionais desculparem, negarem ou apoiarem a barbárie. A tese sustenta que Israel é uma força “imperialista-colonialista”, que os israelitas são “colonizadores” e que os palestinos têm o direito de eliminar os seus opressores. (No dia 7 de outubro, todos aprendemos o que isso significa). Classifica os israelitas como “brancos” ou “adjacentes aos brancos” e os palestinos como “pessoas de cor”.

Esta ideologia, poderosa na academia, e que há muito merece um desafio sério, é uma mistura tóxica e historicamente absurda de teoria marxista, propaganda soviética e antissemitismo tradicional da Idade Média e do século XIX. Mas o seu motor atual é a nova análise de identidade, que vê a história através de um conceito de raça que deriva da experiência americana. O argumento é que é quase impossível que os “oprimidos” sejam eles próprios racistas, tal como é impossível que um “opressor” seja alvo de racismo. Os judeus, portanto, não podem sofrer racismo, porque são considerados “brancos” e “privilegiados”; não sendo vítimas, podem explorar e de fato exploram outras pessoas menos privilegiadas, no Ocidente através dos pecados do “capitalismo explorador” e no Oriente Médio através do “colonialismo”.

Esta análise esquerdista, com a sua hierarquia de identidades oprimidas – e jargão intimidador, uma pista para a sua falta de rigor factual – substituiu, em muitas partes da academia e dos meios de comunicação, os valores tradicionais universalistas da esquerda, incluindo padrões internacionalistas de decência e respeito pela vida humana e a segurança de civis inocentes. Quando esta análise desajeitada colide com as realidades do Oriente Médio, perde qualquer contato com os fatos históricos.

Na verdade, é necessário um salto surpreendente de ilusão a-histórica para desconsiderar o histórico de racismo antijudaico ao longo dos dois milênios desde a queda do Templo da Judéia em 70 d.C. Afinal, o massacre de 7 de outubro está no mesmo nível dos assassinatos em massa medievais de judeus em sociedades cristãs e islâmicas, os massacres de Khmelnytsky na Ucrânia de 1640, os pogroms russos de 1881 a 1920 – e o Holocausto. Até o Holocausto é agora por vezes desconstruído – como notoriamente fez a atriz Whoopi Goldberg – como “não sendo uma questão de raça”, uma abordagem tão ignorante quanto repulsiva.

Ao contrário da narrativa decolonizadora, Gaza não está tecnicamente ocupada por Israel – não no sentido habitual de soldados no terreno. Israel evacuou a Faixa em 2005, removendo os seus assentamentos. Em 2007, o Hamas tomou o poder, matando os seus rivais da Fatah numa curta guerra civil. O Hamas criou um Estado de partido único que esmaga a oposição palestina no seu território, proíbe as relações entre pessoas do mesmo sexo, reprime as mulheres e defende abertamente o assassinato de todos os judeus.

Companhia muito estranha para esquerdistas.

É claro que alguns manifestantes que gritam “do rio ao mar” podem não ter ideia do que estão pedindo; são ignorantes e acreditam que estão simplesmente apoiando a “liberdade”. Eles são simplesmente pró-palestinos – mas sentem a necessidade de apresentar o massacre do Hamas como uma resposta compreensível à opressão “colonial” judaico-israelense. No entanto, outros são negacionistas malignos que buscam a morte de civis israelenses.

A toxicidade desta ideologia é agora clara. Intelectuais outrora respeitáveis debateram descaradamente se 40 bebês foram desmembrados ou se um número menor apenas teve a garganta cortada ou foi queimado vivo. Estudantes agora rasgam regularmente cartazes de crianças mantidas como reféns do Hamas. É difícil entender tamanha desumanidade cruel. A nossa definição de crime de ódio está em constante expansão, mas se isto não é um crime de ódio, o que é? O que está acontecendo em nossas sociedades? Algo deu errado.

Numa reviravolta racista, os judeus são agora acusados dos mesmos crimes que eles próprios sofreram. Daí a afirmação constante de um “genocídio” quando nenhum genocídio ocorreu ou foi planejado. Israel, juntamente com o Egito, impôs um bloqueio a Gaza desde que o Hamas assumiu o poder, e tem bombardeado periodicamente a Faixa em retaliação aos ataques regulares de foguetes. Depois de mais de 4.000 foguetes terem sido disparados pelo Hamas e seus aliados contra Israel, a Guerra de Gaza de 2014 resultou em mais de 2.000 mortes de palestinos. Mais de 7.000 palestinos, incluindo muitas crianças, morreram até agora nesta guerra, segundo o Hamas. Isto é uma tragédia – mas não é um genocídio, uma palavra que foi agora tão desvalorizada pelo seu abuso metafórico que se tornou sem sentido.

Devo também dizer que o domínio israelense nos Territórios Ocupados da Cisjordânia é diferente e, na minha opinião, inaceitável, insustentável e injusto. Os palestinos na Cisjordânia têm sofrido uma ocupação dura, injusta e opressiva desde 1967. Os colonos sob o vergonhoso governo de Netanyahu assediaram e perseguiram os palestinos na Cisjordânia: 146 palestinos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental foram mortos em 2022 e pelo menos 153 em 2023, antes do ataque do Hamas, e mais de 90 desde então. Mais uma vez: isto é terrível e inaceitável, mas não é genocídio.

Embora exista um forte instinto para fazer disto um “genocídio” semelhante ao Holocausto, não o é: os palestinos sofrem com muitas coisas, incluindo a ocupação militar; intimidação e violência dos colonos; liderança política palestina corrupta; negligência insensível por parte dos seus irmãos em mais de 20 estados árabes; a rejeição por parte de Yasser Arafat, o falecido líder palestino, de planos que teriam levado à criação de um Estado palestino independente; e assim por diante. Nada disso constitui genocídio, ou algo parecido com genocídio. O objetivo israelense em Gaza – por razões práticas, entre outras – é minimizar o número de civis palestinos mortos. O Hamas e organizações com ideias semelhantes deixaram bem claro ao longo dos anos que maximizar o número de vítimas palestinas é do seu interesse estratégico. (Deixe tudo isso de lado e considere: a população judaica mundial ainda é menor do que era em 1939, por causa dos danos causados pelos nazistas. A população palestina cresceu e continua a crescer. A redução demográfica é um marcador óbvio de genocídio. No total, cerca de 120 mil árabes e judeus foram mortos no conflito Palestina-Israel desde 1860. Em contraste, pelo menos 500 mil pessoas, principalmente civis, foram mortas na guerra civil síria desde que começou, em 2011).

SE A IDEOLOGIA DA DECOLONIZAÇÃO, ensinada nas nossas universidades como uma teoria da história e gritada nas nossas ruas como evidentemente justa, interpreta muito mal a realidade atual, será que reflete a história de Israel como ela afirma fazer? Não. Na verdade, não descreve com precisão nem a fundação de Israel nem a tragédia dos palestinos.

De acordo com os decolonizadores, Israel é e sempre foi um Estado estranho ilegítimo porque foi fomentado pelo Império Britânico e porque alguns dos seus fundadores eram judeus nascidos na Europa.

Nesta narrativa, a origem de Israel é manchada pela promessa quebrada da Grã-Bretanha imperial de proporcionar a independência árabe, e pela sua promessa cumprida de apoiar um “lar nacional para o povo judeu”, na linguagem da Declaração Balfour de 1917. Mas a suposta promessa aos árabes era, na verdade, um acordo ambíguo de 1915 com Sharif Hussein de Meca, que queria que sua família Hachemita governasse toda a região. Em parte, ele não recebeu este novo império porque a sua família tinha muito menos apoio regional do que ele afirmava. No entanto, em última análise, a Grã-Bretanha entregou três reinos – Iraque, Jordânia e Hejaz – à família.

As potências imperiais – Grã-Bretanha e França – fizeram todo o tipo de promessas a diferentes povos e depois colocaram os seus próprios interesses em primeiro lugar. Essas promessas aos judeus e aos árabes durante a Primeira Guerra Mundial eram típicas. Posteriormente, promessas semelhantes foram feitas aos curdos, aos armênios e a outros, mas nenhuma delas se concretizou. Mas a narrativa central de que a Grã-Bretanha traiu a promessa aos árabes e apoiou a judaica está incompleta. Na década de 1930, a Grã-Bretanha voltou-se contra o sionismo e, de 1937 a 1939, avançou para um Estado árabe sem qualquer Estado judeu. Foi uma revolta armada judaica, de 1945 a 1948, contra a Grã-Bretanha imperial, que culminou no Estado judeu.

Israel existe graças a esta revolta e ao direito e à cooperação internacionais, algo em que os esquerdistas acreditavam no passado. A ideia de uma “pátria” judaica foi proposta em três declarações pela Grã-Bretanha (assinada por Balfour), França e Estados Unidos, então promulgadas numa resolução de julho de 1922 da Liga das Nações que criou os “mandatos” britânicos sobre a Palestina e o Iraque, e que correspondiam aos “mandatos” franceses sobre a Síria e o Líbano. Em 1947, as Nações Unidas planejaram a divisão do mandato britânico da Palestina em dois estados, um árabe e um judeu.

A criação de tais estados a partir desses mandatos também não foi excepcional. No final da Segunda Guerra Mundial, a França concedeu independência à Síria e ao Líbano, Estados-nação recém-concebidos. A Grã-Bretanha criou o Iraque e a Jordânia de forma semelhante. As potências imperiais projetaram a maioria dos países da região, exceto o Egito.

Tampouco foi especial a promessa imperial de pátrias separadas para diferentes etnias ou seitas. Os franceses tinham prometido estados independentes para os drusos, alauitas, sunitas e maronitas, mas no final combinaram-nos na Síria e no Líbano. Todos esses estados foram “vilayets” e “sanjaks” (províncias) do Império Turco Otomano, governado a partir de Constantinopla, de 1517 a 1918.

O conceito de “partição” é, na narrativa da decolonização, considerado um perverso truque imperial. Mas foi inteiramente normal na criação dos Estados-nação do século XX, que foram tipicamente formados a partir de impérios decaídos. E, infelizmente, a criação de Estados-nação foi frequentemente marcada por trocas populacionais, enormes migrações de refugiados, violência étnica e guerras em grande escala. Pensemos na guerra greco-turca de 1921-22 ou na divisão da Índia em 1947. Neste sentido, o processo Israel-Palestina foi típico.

No cerne da ideologia da decolonização está a categorização de todos os israelenses, históricos e atuais, como “colonos”. Isto está simplesmente errado. A maioria dos israelenses descende de pessoas que migraram para a Terra Santa entre 1881 e 1949. Eles não eram completamente novos na região. O povo judeu governou os reinos da Judéia e orou no Templo de Jerusalém durante mil anos, depois esteve presente lá em números menores durante os 2.000 anos seguintes. Em outras palavras, os judeus são indígenas na Terra Santa, e se alguém acredita no regresso dos exilados à sua terra natal, então o regresso dos judeus é exatamente isso. Mesmo aqueles que negam essa história ou a consideram irrelevante para os tempos modernos, devem reconhecer que Israel é agora o único lar de 9 milhões de israelenses que viveram lá durante quatro, cinco, seis gerações.

A maioria dos migrantes para, digamos, o Reino Unido ou os Estados Unidos são considerados britânicos ou americanos. A política em ambos os países está repleta de líderes proeminentes – Suella Braverman e David Lammy, Kamala Harris e Nikki Haley – cujos pais ou avós migraram da Índia, da África Ocidental ou da América do Sul. Ninguém os descreveria como “colonos”. No entanto, as famílias israelenses residentes em Israel há um século são designadas como “colonos” prontos para serem assassinados e mutilados. E, ao contrário do que defendem os apologistas do Hamas, a etnia dos perpetradores ou das vítimas nunca deveria justificar atrocidades. Seriam atrozes em qualquer lugar, cometidos por qualquer pessoa com qualquer história. É desanimador que muitas vezes sejam os autodeclarados “antirracistas” que defendem agora exatamente este assassinato justificado pela etnia.

Os esquerdistas acreditam que os migrantes que escaparam à perseguição devem ser bem-vindos e autorizados a construir as suas vidas noutro lugar. Quase todos os antepassados dos atuais israelenses escaparam à perseguição.

Se a narrativa do “colonizador” não é verdadeira, é verdade que o conflito é o resultado da rivalidade brutal e da batalha pela terra entre dois grupos étnicos, ambos com reivindicações legítimas de viver nessa terra. À medida que mais judeus se mudavam para a região, os árabes palestinos, que ali viviam há séculos e eram a clara maioria, sentiam-se ameaçados por estes imigrantes. A reivindicação palestina sobre a terra não está em dúvida, nem a autenticidade da sua história, nem a sua reivindicação legítima ao seu próprio Estado. Mas inicialmente os migrantes judeus não aspiravam a um Estado, apenas a viver e a cultivar em uma vaga “pátria”. Em 1918, o líder sionista Chaim Weizmann conheceu o Príncipe Hachemita Faisal Bin Hussein para discutir a situação dos judeus que viviam sob seu governo como rei da grande Síria. O conflito de hoje não era inevitável. Tornou-se assim quando as comunidades se recusaram a partilhar e a coexistir, recorrendo então às armas.

Ainda mais absurdo do que o rótulo de “colonizador” é a versão da “branquitude”, que é fundamental para a ideologia da decolonização. Novamente: isso é simplesmente errado. Israel tem uma grande comunidade de judeus etíopes, e cerca de metade de todos os israelenses – isto é, cerca de 5 milhões de pessoas – são Mizrahi, os descendentes de judeus de terras árabes e persas, pessoas do Médio Oriente. Eles não são nem “colonos”, nem “colonialistas”, nem europeus “brancos”, mas sim habitantes de Bagdad, do Cairo e de Beirute durante muitos séculos, mesmo milênios, que foram expulsos depois de 1948.

Uma palavra sobre aquele ano, 1948, o ano da Guerra da Independência de Israel e da Nakba (“Catástrofe”) palestina, que no discurso da decolonização equivale a uma limpeza étnica. Houve, de fato, intensa violência étnica de ambos os lados quando os estados árabes invadiram o território e, juntamente com as milícias palestinas, tentaram impedir a criação de um estado judeu. Eles falharam, o que acabou por impedir a criação de um Estado palestino, tal como pretendido pelas Nações Unidas. O lado árabe procurou matar ou expulsar toda a comunidade judaica – precisamente da mesma forma assassina que vimos em 7 de outubro. E nas áreas que o lado árabe capturou, como Jerusalém Oriental, todos os judeus foram expulsos.

Nesta guerra brutal, os israelenses expulsaram efetivamente alguns palestinos das suas casas; outros fugiram dos combates; outros ainda ficaram e são agora árabes israelenses que têm direito a voto na democracia israelenses. (Cerca de 25% dos israelenses atuais são árabes e drusos.) Cerca de 700.000 palestinos perderam as suas casas. Essa é um número enorme e uma tragédia histórica. A partir de 1948, cerca de 900 mil judeus perderam as suas casas em países islâmicos e a maioria deles mudou-se para Israel. Estes acontecimentos não são diretamente comparáveis, e não pretendo propor uma competição em termos de tragédia ou hierarquia de vitimização. Mas o passado é muito mais complicado do que os decolonizadores querem fazer crer.

Deste imbróglio, emergiu um Estado, Israel, e outro não, a Palestina. Sua formação está muito atrasada.

É BIZARRO que um pequeno estado no Oriente Médio atraia tanta atenção apaixonada no Ocidente, a ponto de os estudantes correrem pelas universidades da Califórnia gritando “Palestina Livre”. Mas a Terra Santa tem um lugar excepcional na história ocidental. Está incorporado na nossa consciência cultural, graças às Bíblias Hebraica e Cristã, à história do Judaísmo, à fundação do Cristianismo, ao Alcorão e à criação do Islã, e às Cruzadas que, juntas, fizeram com que os Ocidentais se sentissem envolvidos no seu destino. O primeiro-ministro britânico David Lloyd George, o verdadeiro arquiteto da Declaração Balfour, costumava dizer que os nomes dos lugares na Palestina “eram-me mais familiares do que os da Frente Ocidental”. Esta afinidade especial com a Terra Santa funcionou inicialmente a favor do regresso judaico, mas ultimamente tem funcionado contra Israel. Os ocidentais, ansiosos por expor os crimes do imperialismo euro-americano, mas incapazes de oferecer uma solução, uniram-se, muitas vezes sem conhecimento da história real, em torno de Israel e da Palestina como o exemplo mais vívido da injustiça imperialista do mundo.

O mundo aberto das democracias liberais – ou do Ocidente, como costumava ser chamado – está hoje polarizado por uma política paralisada, disputas culturais mesquinhas mas cruéis sobre identidade e gênero, e um sentimento de culpa pelos sucessos e pecados históricos, uma culpa que é bizarramente expiada através da demonstração de simpatia e até atração por inimigos dos nossos valores democráticos. Neste cenário, as democracias ocidentais são sempre maus atores, hipócritas e neo-imperialistas, enquanto as autocracias estrangeiras ou seitas terroristas como o Hamas são inimigas do imperialismo e, portanto, forças sinceras do bem. Neste cenário de pernas para o ar, Israel é uma metáfora viva e serve de penitência pelos pecados do Ocidente. O resultado é o intenso escrutínio de Israel e a forma como é julgado, usando-se padrões raramente alcançados por qualquer nação em guerra, incluindo os Estados Unidos.

Mas a narrativa decolonizadora é muito pior do que uma análise de dois pesos e duas medidas; desumaniza uma nação inteira e desculpa, e até celebra, o assassinato de civis inocentes. Como demonstraram estas duas últimas semanas, a decolonização é agora a versão autorizada da história em muitas das nossas escolas e instituições supostamente humanitárias, e entre artistas e intelectuais. É apresentada como história, mas na verdade é uma caricatura, uma história zumbi com o seu arsenal de jargões – o sinal de uma ideologia coercitiva, como argumentou Foucault – e a sua narrativa autoritária de vilões e vítimas. E só se mantém num cenário em que grande parte da história real é suprimida e em que todas as democracias ocidentais são atores de má-fé.

Embora lhe falte a sofisticação da dialética marxista, a sua certeza moral hipócrita impõe um quadro moral a uma situação complexa e intratável, que alguns podem achar consoladora. Sempre que você lê um livro ou um artigo e ele usa a expressão “colonizador-colonialista” (“settler-colonialist” no original), você está lidando com polêmica ideológica, não com história.

Em última análise, esta narrativa zumbi é um beco sem saída moral e político que leva ao massacre e ao impasse. Isto não é nenhuma surpresa, porque se baseia numa história falsa: “Um passado inventado nunca pode ser usado”, escreveu James Baldwin. “Ele racha e desmorona sob as pressões da vida como argila”.

Mesmo quando a palavra decolonização não aparece, esta ideologia está incorporada na cobertura partidária do conflito pelos meios de comunicação social e permeia as recentes condenações de Israel. A alegria dos estudantes, em resposta ao massacre, em Harvard, na Universidade da Virgínia e em outras universidades; o apoio ao Hamas entre artistas e atores, juntamente com os equívocos evasivos por parte dos líderes de algumas das instituições de investigação mais famosas da América, demonstraram uma chocante falta de moralidade, humanidade e decência básica.

Um exemplo repulsivo foi uma carta aberta assinada por milhares de artistas, incluindo atores britânicos famosos como Tilda Swinton e Steve Coogan. Alertou contra os iminentes crimes de guerra de Israel e ignorou totalmente o casus belli: o massacre de 1.400 pessoas.

A jornalista Deborah Ross escreveu num poderoso artigo do Times of London que estava “totalmente chocada” porque a carta não continha “nenhuma menção ao Hamas” e nenhuma menção ao “sequestro e assassinato de bebês, crianças, avós, jovens dançando pacificamente em um festival de paz. A falta de compaixão básica e humanidade, isso é o que foi tão inacreditavelmente devastador. É tão difícil? Apoiar e sentir pelos cidadãos palestinos… ao mesmo tempo em que reconhece o horror indiscutível dos ataques do Hamas?” Então ela perguntou a esse desfile dramático de nulidades morais: “O que isso resolve, uma carta como essa? E por que alguém a assinaria?”

O conflito Israel-Palestina é desesperadamente difícil de resolver e a retórica da decolonização torna ainda menos provável a única saída que é o compromisso negociado.

Desde a sua fundação em 1987, o Hamas tem utilizado o assassinato de civis para inviabilizar qualquer possibilidade de uma solução de dois Estados. Em 1993, os seus atentados suicidas contra civis israelenses foram concebidos para destruir os Acordos de Olso, de dois Estados, que reconheciam Israel e Palestina. Este mês, os terroristas do Hamas desencadearam a sua matança, em parte para minar a paz com a Arábia Saudita que teria melhorado a política e o padrão de vida palestinos, e revigorado o esclerosado rival do Hamas, a Autoridade Palestiniana. Em parte, serviram ao Irã para impedir o aumento do poder da Arábia Saudita, e as suas atrocidades foram, naturalmente, uma armadilha espetacular para provocar uma reação exagerada israelense. Muito provavelmente, estão atingindo seus objetivos, mas para o fazer estão explorando cinicamente o povo palestino inocente como um sacrifício para objetivos políticos, o que é um segundo crime contra civis. Da mesma forma, a ideologia da decolonização, com a sua negação do direito de Israel à existência e do direito do seu povo a viver em segurança, torna a existência de um Estado palestino menos provável, se não impossível.

O problema nos nossos países é mais fácil de resolver: a sociedade civil e a maioria chocada devem agora afirmar-se. As loucuras radicais dos estudantes não deveriam nos alarmar muito; os estudantes ficam sempre entusiasmados com extremismos revolucionários. Mas as celebrações indecentes em Londres, Paris e Nova York, e a clara relutância dos líderes das principais universidades em condenar os assassinatos, expuseram o custo de negligenciar esta questão e de deixar a “decolonização” colonizar a nossa academia.

Pais e alunos podem mudar-se para universidades que não sejam lideradas por equívocos e patrulhadas por negacionistas e carniceiros; os doadores podem retirar as suas doações em massa, e isso está começando nos Estados Unidos. Os filantropos podem retirar o financiamento de fundações humanitárias lideradas por pessoas que apoiam crimes de guerra contra a humanidade (contra vítimas selecionadas por raça). O público pode facilmente decidir não assistir a filmes estrelados por atores que ignoram o assassinato de crianças; os estúdios não precisam contratá-los. E nas nossas academias, esta ideologia venenosa, seguida pelos malignos e tolos, mas também pelos elegantes e bem-intencionados, tornou-se uma posição padrão. Deve perder a sua respeitabilidade, a sua autenticidade como história. A sua nulidade moral foi exposta à vista de todos.

Mais uma vez, os acadêmicos, os professores e a nossa sociedade civil, bem como as instituições que financiam e regulam as universidades e as instituições de caridade, precisam desafiar uma ideologia tóxica e desumana que não tem base na história real ou no presente da Terra Santa, e que justifica uma ideologia que permite que pessoas, de outra forma racionais, desculpem o desmembramento de bebês.

Israel fez muitas coisas duras e ruins. O governo de Netanyahu, o pior de sempre na história de Israel, tão inepto quanto imoral, promove um ultranacionalismo maximalista que é ao mesmo tempo inaceitável e imprudente. Todos têm o direito de protestar contra as políticas e ações de Israel, mas não de promover seitas terroristas, a matança de civis e a propagação de um antissemitismo ameaçador.

Os palestinos têm queixas legítimas e têm sofrido muitas injustiças brutais. Mas ambas as suas entidades políticas são totalmente falhas: a Autoridade Palestina, que governa 40% da Cisjordânia, é moribunda, corrupta, inepta e geralmente desprezada – e os seus líderes têm sido tão horríveis como os de Israel.

O Hamas é uma seita diabólica de matança que se esconde entre os civis, que sacrifica vidas no altar da resistência – como afirmaram abertamente vozes árabes moderadas nos últimos dias, e de forma muito mais dura do que os apologistas do Hamas no Ocidente. “Condeno categoricamente os ataques contra civis por parte do Hamas”, declarou comoventemente o veterano estadista saudita Príncipe Turki bin Faisal na última semana. “Também condeno o Hamas por dar uma base moral mais elevada a um governo israelense que é universalmente evitado até mesmo por metade do público israelense… Condeno o Hamas por sabotar a tentativa da Arábia Saudita de chegar a uma resolução pacífica para a situação dos palestinos”. Numa entrevista com Khaled Meshaal, membro do Politburo do Hamas, a jornalista árabe Rasha Nabil destacou o sacrifício que o Hamas faz do seu próprio povo pelos seus interesses políticos. Meshaal argumentou que este era apenas o custo da resistência: “Trinta milhões de russos morreram para derrotar a Alemanha”, disse ele.

Nabil é um exemplo para os jornalistas ocidentais que dificilmente ousam desafiar o Hamas e os seus massacres. Nada é mais paternalista e até Orientalista(1) do que a romantização dos carniceiros do Hamas, que muitos árabes desprezam. A negação das suas atrocidades por tantos no Ocidente é uma tentativa de transformar em heróis aceitáveis uma organização que desmembra bebês e estupra os corpos de moças assassinadas. Esta é uma tentativa de salvar o Hamas de si mesmo. Talvez os apologistas ocidentais do Hamas devessem ouvir as vozes árabes moderadas em vez de uma seita terrorista fundamentalista.

As atrocidades do Hamas colocam-no, tal como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, como uma abominação além da tolerância. Israel, como qualquer Estado, tem o direito de se defender, mas deve fazê-lo com muito cuidado e com o mínimo de perdas civis, e será difícil, mesmo com uma incursão militar total, destruir o Hamas. Entretanto, Israel tem de refrear as suas injustiças na Cisjordânia – ou arrisca-se a destruir-se a si próprio – porque, em última análise, tem de negociar com os palestinos moderados.

Assim, a guerra se desenrola tragicamente. Enquanto escrevo isto, o ataque a Gaza mata crianças palestinas todos os dias, e isso é insuportável. Enquanto Israel ainda lamenta as suas perdas e enterra os seus filhos, deploramos o assassinato de civis israelenses, tal como deploramos o assassinato de civis palestinos. Rejeitamos o Hamas, maligno e incapaz de governar, mas não confundimos o Hamas com o povo palestino, cujas perdas lamentamos enquanto lamentamos a morte de todos os inocentes.

No decorrer da história, por vezes acontecimentos terríveis podem abalar convicções fortes: Anwar Sadat e Menachem Begin fizeram a paz após a Guerra do Yom Kippur; Yitzhak Rabin e Yasser Arafat fizeram as pazes após a Intifada. Os crimes diabólicos de 7 de outubro nunca serão esquecidos, mas talvez, nos próximos anos, após a dispersão do Hamas, depois do Netanyahuismo ser apenas uma memória catastrófica, israelenses e palestinos possam traçar, em reconhecimento mútuo, as fronteiras dos seus estados, temperados por 75 anos de matanças e atordoados pela carnificina do Hamas num fim de semana.

Não há outro caminho.

(1) Orientalismo é um termo que descreve como os europeus se referem a territórios inexplorados no Oriente ou no Mundo Islâmico. Lugares como a Turquia, Oriente Médio e Norte da África são descritos como exóticos ou até lugares ficcionais.

Punição coletiva ou baixas de guerra?

Considero Lourival Sant’Anna um dos melhores jornalistas internacionais do país. Suas análises são sempre ponderadas e profundas, enriquecendo o entendimento dos diversos problemas da arena global. Mas mesmo Sant’Anna não escapou da tentação de igualar coisas inigualáveis.

Na ânsia de equilibrar a balança, o jornalista afirma que Israel está infringindo a lei internacional, ao impor uma “punição coletiva contra civis”. Ora, as palavras têm sentido. “Punir” significa “castigar em decorrência de um crime”. Sant’anna está afirmando que Israel estaria deliberadamente impondo um castigo aos civis da Faixa de Gaza por crimes que estes teriam cometido.

Ora, desde o início o governo israelense tem afirmado que seu único objetivo é neutralizar o Hamas. A acusação feita pelo jornalista implica supor que as autoridades israelenses estão mentindo, e que seu real objetivo é atacar a esmo a população de Gaza, com o objetivo de puni-la por seus crimes.

É só óbvio que, como em qualquer guerra, lamentavelmente há baixas civis. Mas daí a afirmar que essas baixas são propositalmente buscadas por Israel como forma de punição, vai uma distância amazônica. Se nem um jornalista ponderado como Lourival Sant’Anna consegue distinguir uma coisa da outra, então Israel está realmente a pé no front das relações públicas.

Potência colonizadora?

Estava lendo uma thread no X, em que um professor da PUC-SP defendia a tese de que os judeus fizeram o papel de “potência colonizadora” na Palestina e, por isso, os palestinos tinham o direito de lutar para se livrar do jugo colonizador, assim como os povos africanos se livraram dos colonizadores europeus. Não à toa, em sua bio, reluz a frase “from the river to the sea Palestine will be free”. A tese tem inconsistências em vários níveis, mas não vou aqui apontá-las. Antes, vou fazer um exercício contrafactual que, por si, servirá como contraprova da tese.

Imagine, por um momento, que não houvesse movimento sionista e, portanto, não houvesse imigração de judeus para a Palestina no início do século. Temos, então, o Mandato Britânico na região a partir de 1917, e que dará origem aos territórios da Palestina e da Transjordânia, habitados quase que exclusivamente por árabes.

Depois da 2a Guerra, com a retirada da Grã-Bretanha da região, a Transjordânia se tornaria a Jordânia, enquanto a Palestina se tornaria, supostamente, a Palestina, englobando todo o território em que hoje se localiza o Estado de Israel. Ocorre que um Estado não nasce sem que haja um corpo político que o governe. A questão é: onde estava esse “corpo político” palestino em 1948? Alguma liderança surgiu para reivindicar o governo? A resposta é não. Os árabes viviam na região sem um sentido de Estado, em aldeias autônomas que não estavam ligadas entre si por nenhuma ideia de “governo central”. Por outro lado, os judeus na Palestina tinham um sentido de nacionalidade comum, que desembocou no primeiro governo eleito de Israel, liderado por Ben Gurion. Os israelenses declararam a sua independência na véspera da saída da Grã-Bretanha. Não houve algo semelhante no Estado Palestino.

Aliás, é interessante notar o “wording” usado pela ONU na resolução 181, de 29/11/1947, aquela que definiu a “solução dos dois Estados”. Em nenhum momento a resolução se refere aos judeus como “israelenses” e aos árabes como “palestinos”, mas sim como “judeus” e “árabes”. Haveria um estado judeu e um estado árabe. Foram os judeus que se reuniram e deram o nome de “Israel” para o novo Estado. Os árabes não fizeram a mesma coisa, não houve nome algum, demonstrando, mais uma vez, que não havia a intenção de criar nada semelhante a um Estado árabe ali. Em outras palavras, não havia o sentido de “autodeterminação” por parte dos árabes que viviam na Palestina.

Pois então, voltemos à “Palestina sem os judeus”. É possível que os árabes daquele território conseguissem se unir em torno de um governo? Pode ser. Mas, fica a questão: por que não o fizeram em 1948? Por que somente um Estado, o judeu, se organizou? Uma liderança unificada palestina somente começaria a tomar forma com o estabelecimento da OLP, em 1964 e, mesmo assim, por iniciativa da Liga Árabe das Nações, e não por um movimento autóctone. Até então, os Estados árabes estavam mais preocupados em varrer Israel do mapa. Aliás, acho bem provável que, em 1948, os Estados organizados em volta da Palestina (principalmente Egito e Síria, e possivelmente a Jordânia) se aproveitassem da ausência dos britânicos para conquistar fatias daquele território para os seus próprios Estados.

Assim, parece pouco provável que tivéssemos hoje um Estado Palestino, na hipótese de os judeus não terem imigrado para a região. Claro, trata-se de um exercício de futurologia reversa, pois não temos realmente como saber o que aconteceria. O ponto é que o nacionalismo palestino somente nasce como contraponto ao estabelecimento do Estado de Israel. É a existência de Israel que cria a noção de um Estado Palestino, de uma nacionalidade palestina. O ponto é que Israel já existia na mente de Theodor Herzl desde o final do século XIX, ao passo que o Estado Palestino somente aparece na resolução 181 da ONU e, mesmo assim, somente como um Estado Árabe genérico, sem nem mesmo um nome próprio.

Aliás, nem vou conjecturar o que seria da região, hoje, se os judeus simplesmente se retirassem de lá. Imaginem o Hamas, o Fatah e outros grupelhos árabes se engalfinhando para tomar o poder na região. Certamente não seria um espetáculo bonito de se ver.

Portanto, data vênia, a ideia de uma “colonização judaica” opressora não se sustenta. Não havia Palestina na época e, provavelmente, não haveria Palestina hoje, se não houvesse um Estado Judeu na região. O framework do “opressor-oprimido” serve bem para gritar palavras de ordem em passeatas, mas pouco explica o imbróglio e menos ainda aponta saídas. A não ser, claro, a saída de jogar os judeus ao mar.

À espera de Mandela

Thomas Friedman novamente. Em um longo artigo, Friedman descreve, de maneira bastante competente (como sempre), todas as perplexidades que envolvem a atual situação de Israel. No entanto, fica claro como até um analista experiente como ele não consegue articular alternativas minimamente críveis para o fim dessa crise. Não o culpo, porque não existem.

Nesse artigo, Friedman defende o anúncio do fim da política de assentamentos na Cisjordânia como ponto de partida para um processo de paz. E não lá na frente, mas agora, agorinha mesmo. Para entender o tamanho dessa fantasia, basta ler o parágrafo seguinte. Como contrapartida a esse anúncio, a Autoridade Palestina deveria escolher uma “liderança competente para construir instituições decentes e livres de corrupção, que conquistem o respeito das pessoas e legitimidade”. Uau! Nada menos do que um Mandela!

Pena que um Nelson Mandela é figurinha rara no álbum dos governantes globais. E este é o problema dessa proposta de Friedman: o anúncio do fim dos assentamentos é a parte fácil do quidproquo, ainda que não seja propriamente fácil. A parte difícil, incerta, improvável, é essa da “nova liderança palestina”.

Não custa lembrar, pela enésima vez, que já houve algo nessa linha: em 2005, Israel não só anunciou o fim da expansão dos assentamentos em Gaza, como retirou seus colonos à força. E quem fez isso foi um linha dura como Ariel Sharon, tão falcão quanto Netanyahu. E qual foi o resultado? O Hamas ganhou as eleições para comandar o território e, dois anos depois, deu um golpe e assumiu com poderes ditatoriais. Onde está o Mandela?

A política de assentamentos na Cisjordânia nasceu dessa, digamos, experiência. Netanyahu e a linha dura de Israel ganharam força ao se mostrarem premonitórios sobre o que aconteceria com Gaza sem a presença de Israel. Os assentamentos na Cisjordânia são, a um só tempo, exigência dos religiosos e dos militares. Difícil lhes tirar a razão, considerando o que aconteceu em Gaza.

Israel poderia dar uma segunda chance para a paz, anunciando o fim dos assentamentos? Creio que sim. Mas o timing aqui é importante. Friedman fala de um anúncio “agora”, como pré-condição para o distencionamento. O problema dessa proposta é o sinal que envia: depois da carnificina perpetrada pelo Hamas, um anúncio desses soaria como uma legitimação dos métodos do grupo terrorista. -Ah, quer dizer então que funciona, vamos continuar nessa linha e ver até onde Israel vai recuar. Lembre-se, não há um Mandela do outro lado, esse é o raciocínio desse povo nessa parte do mundo.

Não, Israel não tem opções fáceis pela frente. Ainda mais atuando contra um inimigo que vê a morte como algo glorioso, um martírio. O fim dos assentamentos pode até ocorrer, mas certamente não agora, mas como parte de um plano abrangente. O erro da retirada unilateral de Gaza, podem estar certos, não ocorrerá novamente.

As quatro opções intragáveis de Israel para o futuro de Gaza

Vou transcrever aqui uma tradução de um artigo da Economist publicado hoje, sobre as opções de Israel. É um pouco longo, mas vale a leitura de cada linha, para finalmente entender um pouco da política de Gaza/Cisjordânia e de como não há opções óbvias para Israel.

“As declarações públicas que Joe Biden fez durante a sua visita relâmpago a Israel em 18 de Outubro não sugeriram muitas dúvidas sobre a iminente invasão da Faixa de Gaza por Israel. Contudo, em privado, os conselheiros do presidente americano esperavam pressionar os líderes de Israel sobre uma questão urgente: o que deveria acontecer depois da guerra?

As autoridades israelenses dizem que estão concentradas em derrubar o Hamas do poder, em retribuição pelo massacre que cometeu no sul de Israel em 7 de Outubro. “Gaza não será mais uma ameaça para Israel”, afirma Eli Cohen, o ministro das Relações Exteriores. “Não concordaremos que o Hamas mantenha qualquer poder em Gaza.” Mesmo depois de os riscos de combate num local tão densamente povoado terem sido ilustrados por uma explosão mortal no dia 17 de Outubro no hospital Ahli Arab de Gaza, que Israel atribuiu a um foguete palestino sem direção, os objetivos de guerra declarados por Israel não mudaram.

Uma encruzilhada de quatro caminhos

Mas os planos pós-guerra de Israel permanecem incertos. Existem quatro opções principais, todas ruins. A primeira é uma ocupação prolongada de Gaza, como a que empreendeu entre 1967 e 2005. As tropas israelenses teriam de proteger o enclave e, na ausência de um governo palestino, poderiam ter também de supervisionar os serviços básicos.

Isto poderia agradar a um segmento da direita religiosa de Israel, que ainda se irrita com a retirada, em 2005, de todos os soldados e colonos israelenses de Gaza, interpretada como o abandono de uma fatia da pátria bíblica dos judeus. Mas ninguém mais quer ver Gaza reocupada, dados os pesados encargos financeiros e a probabilidade de uma interminável má reverberação na mídia e de um fluxo constante de mortes. Biden alertou em 15 de outubro que uma ocupação duradoura seria um “grande erro”. A maioria dos estrategistas israelenses concorda.

A segunda opção é travar uma guerra que decapite o Hamas e depois abandonar o território. Este é sem dúvida o pior caminho a seguir. Alguns dos líderes e apoiadores do Hamas provavelmente surgiriam para reconstituir o grupo. Mesmo que não o fizessem, alguma outra força indesejável tomaria o seu lugar. O Oriente Médio tem uma história de grupos radicais que aproveitam esses vácuos.

O melhor resultado, na perspectiva de Israel, seria o regresso da Autoridade Palestiniana (AP), que governa partes da Cisjordânia em coordenação com Israel. Mas esse caminho está repleto de obstáculos. A primeira é que Mahmoud Abbas, o presidente palestino, está relutante em fazê-lo. “Não creio que alguém possa ser tão estúpido e pensar que pode regressar a Gaza nas costas de um tanque israelense”, diz Ghassan al-Khatib, antigo ministro palestino.

Mesmo que Abbas pudesse tomar o poder dessa forma, talvez não o quisesse. Yasser Arafat, o anterior presidente da Autoridade Palestina e figura de longa data do nacionalismo palestino, gostava de Gaza; ele viveu lá durante algum tempo depois de ter sido autorizado a regressar à Palestina, em 1994. Pessoas próximas de Abbas dizem que ele, pelo contrário, vê Gaza como um lugar hostil.

É quase certo que Gaza seria hostil à polícia palestina enviada para protegê-la. A Autoridade Palestina emprega cerca de 60 mil pessoas nos seus serviços de segurança, que têm autoridade em cerca de um terço da Cisjordânia (ver mapa abaixo). Não consegue controlar nem mesmo essa área limitada: partes de Jenin e Nablus, cidades no norte da Cisjordânia, estão tão revoltadas que as forças da Autoridade Palestina não ousam patrulhá-las para não serem atacadas. O moral está baixo. Se a polícia palestina regressasse a Gaza, seria um alvo para os remanescentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros militantes. O Hamas e a Autoridade Palestina travaram uma guerra civil sangrenta em Gaza depois que o Hamas venceu as eleições parlamentares em 2006. O Hamas acabou vencendo e expulsou a Autoridade Palestina do território em 2007.

A segurança também não é a única questão. Depois que o Hamas chegou ao poder, Abbas pediu aos burocratas em Gaza que parassem de trabalhar. O Hamas, por sua vez, contratou dezenas de milhares de apoiadores para ocuparem funções públicas, enquanto a Autoridade Palestina continuou a pagar aos seus trabalhadores para ficarem em casa. Manter essa burocracia significaria trabalhar com cerca de 40 mil pessoas contratadas pela sua lealdade ideológica ao Hamas; rejeitá-los seria repetir o erro do programa de “desbaathificação” dos Estados Unidos no Iraque, que lançou legiões de homens furiosos e desempregados nas ruas.

Uma quarta opção seria montar algum tipo de administração alternativa, composta por notáveis locais trabalhando em estreita colaboração com Israel e o Egipto. Israel confiou nesse tipo de acordo até a década de 1990, antes de a Autoridade Palestina começar a assumir funções civis nos territórios ocupados.

Tem-se falado em tentar recrutar Muhammad Dahlan, um antigo chefe de segurança do Paquistão que cresceu em Gaza, para assumir as rédeas depois do Hamas. Mas Dahlan passou a última década em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos. Ele se desentendeu com a AP; em 2016, um tribunal palestino condenou-o por corrupção. Também há desavença entre ele e as famílias em Gaza: ele liderou a luta contra o Hamas em 2007. “Acho que isso é uma ilusão”, diz Michael Milstein, coronel da reserva do exército israelense e analista do Centro Moshe Dayan, um think tank em Tel Aviv. “Eu nem tenho certeza se ele gostaria de voltar. Ele ficaria preocupado que as pessoas o quisessem morto.”

O caso de Dahlan aponta para um problema maior. Os palestinos estão divididos há quase duas décadas. A divisão é em grande parte culpa deles: embora os líderes do Hamas e da Autoridade Palestina se reúnam a cada dois anos para defender a reconciliação da boca para fora, nenhuma das partes quer chegar a um acordo. Mas o cisma também foi exacerbado pela política de dividir para governar de Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, que a considerou uma ferramenta útil para frustrar o sonho palestino de um Estado independente. “Netanyahu tinha uma estratégia ruim de manter o Hamas vivo e forte”, diz Ehud Barak, antigo primeiro-ministro israelense.

Tanto o Hamas como a AP governam os seus estados como regimes autoritários de partido único. Em 2021, Nizar Banat, um crítico de Abbas, foi espancado até à morte pela polícia palestina na sua casa em Hebron. Aqueles que se opõem ao Hamas em Gaza correm o risco de tortura e execução. A maioria dos palestinos opta por manter o silêncio, evitando a política e concentrando-se nas suas lutas quotidianas.

A sondagem mais recente do Centro Palestino de Estudos Políticos e Pesquisas (PCPSR) concluiu que 65% dos habitantes de Gaza votariam em Ismail Haniyeh, o líder do Hamas, numa corrida presidencial frente a frente contra Abbas (que perderia o Cisjordânia também). O Hamas obteria 44% dos votos em Gaza numa votação parlamentar, enquanto o Fatah, a facção de Abbas, obteria apenas 28%.

Entre a cruz e a espada

À primeira vista, isto sugeriria um apoio duradouro ao Hamas. Mas essas sondagens oferecem apenas uma escolha binária entre militantes e incompetentes. Um total de 80% dos palestinos querem a demissão de Abbas. Horas depois da explosão do hospital, ocorreram protestos em cidades da Cisjordânia, onde os manifestantes gritavam: “O povo exige a queda do presidente”. Ele tem 87 anos e não tem um sucessor claro. Nenhum de seus possíveis substitutos inspira muito entusiasmo.

Numa hipotética corrida entre Haniyeh e Muhammad Shtayyeh, o insípido primeiro-ministro da Palestina, o primeiro venceria por uma margem de 45 pontos em Gaza e 21 pontos na Cisjordânia. Mais uma vez, isto é menos uma prova da popularidade de Haniyeh do que da falta de popularidade de Shtayyeh: uma sondagem realizada em 2019, após os seus primeiros 100 dias no cargo, revelou que 53% dos palestinos nem sequer sabiam que ele era o primeiro-ministro.

Perguntas abertas produzem resultados mais reveladores. Quando o PCPSR pediu aos palestinos que nomeassem o seu sucessor preferido para Abbas, a maioria disse que não sabia. A segunda resposta mais popular, tanto na Cisjordânia como em Gaza, foi Marwan Barghouti, um membro da Fatah que cumpre múltiplas penas de prisão perpétua numa prisão israelense por orquestrar ataques terroristas que vitimou civis. Várias das outras principais escolhas, como Dahlan e Khaled Meshal, antigo líder do Hamas, nem sequer vivem nos territórios palestinos.

Exilados, prisioneiros – ou ninguém: a vida política palestina está moribunda. Os palestinos culpam Israel por esta situação lamentável, argumentando que a falta de conversações de paz significativas privou a Palestina da sua razão de ser. “Acho que Abbas será o último presidente palestino”, diz Khatib. “Toda a ideia da Autoridade Palestiniana é que se trata de uma transição para um Estado palestino. Se não houver horizonte político, a AP se torna irrelevante.”

Os israelitas afirmam que a AP se auto minou através da corrupção desenfreada. Bilhões de dólares em ajuda externa foram desviados ao longo das últimas três décadas para comprar vilas luxuosas na Jordânia e para encher contas bancárias na Europa. Solicitados a nomear os principais problemas da sociedade palestina, mais pessoas citam a corrupção do seu próprio governo (25%) do que a ocupação de Israel (19%).

Há culpas em número suficiente para compartilhar. O resultado, porém, é que a Fatah é provavelmente irredimível aos olhos da maioria dos palestinos, um movimento de libertação que se tornou caucificado e decadente. Nos últimos anos, até mesmo alguns israelenses começaram a questionar-se se o Hamas poderia tornar-se um interlocutor, seguindo o mesmo caminho que o Fatah fez décadas antes, de militantes violentos a burocratas dóceis.

Não só o Hamas parecia concentrado em tentar melhorar a economia de Gaza, como alguns dos seus líderes também pareciam receptivos a uma solução de dois Estados. Isso teria sido uma mudança notável para um grupo cuja carta apelava à destruição de Israel. No ano passado, Bassem Naim, membro da liderança política do grupo em Gaza, disse a um correspondente que estava disposto a aceitar “um Estado nas fronteiras de 1967”. Ghazi Hamad, outra autoridade política, havia dito a mesma coisa um ano antes.

Tais pensamentos agora parecem ingênuos. Milstein foi um dos poucos israelenses proeminentes que alertou, muito antes do massacre, que o aparente pragmatismo do Hamas era apenas um estratagema. A sua opinião, justificada pelos últimos acontecimentos, é agora quase universal em Israel. Mesmo que o Hamas estivesse disposto a participar nas conversações de paz, um público israelense furioso e enlutado não seria um parceiro disposto: a grande maioria dos israelenses quer destruir o Hamas e não recompensá-lo.

Duas outras questões moldarão o futuro de Gaza. Uma delas é o papel que os estados árabes irão desempenhar. Em conversas privadas durante a semana passada, várias autoridades árabes apresentaram a ideia de uma força estrangeira de manutenção da paz para o enclave – mas a maioria rapidamente acrescentou que o seu país não estava ansioso por participar.

O Egito não é popular em Gaza, tanto porque se juntou a Israel no bloqueio do território, como devido à sua história anterior como governante de Gaza de 1948 a 1967. Os Emirados Árabes hesitariam em desempenhar um grande papel. “Não agimos sozinhos”, diz um diplomata dos Emirados. O mesmo provavelmente se aplica à Arábia Saudita.

Israel provavelmente vetaria qualquer papel do Qatar, um dos países com maior influência em Gaza. Durante anos, o emirado ajudou a estabilizar a economia de Gaza com a bênção de Israel, distribuindo até 30 milhões de dólares por mês em pagamentos de assistência social, salários de funcionários públicos e combustível gratuito. Mas o seu apoio ao Hamas – alguns dos líderes do grupo vivem lá – irá agora torná-lo suspeito. “Toda a estratégia de Israel durante a última década foi confiar no Qatar”, diz Milstein. “Uma das lições que deveríamos aprender com esta guerra é que não deveríamos permitir mais envolvimento do Catar.”

Embora os estados árabes não queiram proteger Gaza, podem estar dispostos a ajudar a reconstruí-la. Após a última grande guerra, em 2014, os doadores prometeram 3,5 bilhões de dólares para a reconstrução (embora, no final de 2016, tivessem desembolsado apenas 51% desse montante). A conta será ainda maior desta vez.

A outra questão é o que acontecerá com a AP. As pesquisas dizem que metade dos palestinos acham que deveria ser dissolvida. Fazer isso privaria muitos deles de rendimento (a Autoridade Palestina é o maior empregador na Cisjordânia) e provavelmente levaria a mais violência. Mas também aumentaria os custos da ocupação de Israel e, talvez, forçasse o regresso questão Palestina à agenda política de Israel, depois de duas décadas em que o assunto raramente foi discutido. “É a única carta na manga que lhe resta”, diz um antigo confidente de Abbas.

Não existe uma solução duradoura apenas para Gaza. Apesar do longo cisma, os palestinos ainda se consideram parte de um sistema político mais amplo. De qualquer forma, a faixa é demasiado pequena e desprovida de recursos naturais para prosperar por si só. A sua economia depende de Israel: tudo, desde as plantações de morangos às fábricas de móveis, depende das exportações para o seu vizinho mais rico. Independentemente de quem assuma o controlo, Gaza não será nem estável nem próspera como um pequeno Estado isolado.

A única forma de trazer tranquilidade duradoura a Gaza é através de uma resolução mais ampla do conflito israelense-palestino. Se a perspectiva de uma solução negociada se evaporar completamente, alerta Khatib, “com ela, a liderança moderada desaparecerá”. Israel pode até decapitar o Hamas. Mas é muito menos claro que algo melhor tomará o seu lugar.”

Não há boas opções

O título do artigo de hoje de William Waack é muito melhor do que o artigo em si, que justamente se perde no labirinto da falta de opções de Israel. Esse título dá um gancho para retificar uma ideia que talvez eu tenha passado no meu post anterior, em que critiquei artigo de Thomas Friedman, a respeito de uma potencial invasão de Gaza por Israel.

Alguns comentários me alertaram para o fato de que eu passava a impressão de estar defendendo a invasão de Gaza. A ideia nunca foi essa, mesmo porque não me sinto gabaritado a dar conselhos ao governo de Israel. O ponto do post era apenas criticar a fraqueza dos motivos apontados por Friedman para a não-invasão, quais sejam, a “imagem” de Israel, a “responsabilidade” de Israel diante de tudo o que acontecesse de ruim no território e a “frustração” dos planos do inimigo. Em minha opinião, nenhum desses pontos tocava na questão crucial: a segurança de Israel, que, imagino, seja a preocupação número 1 do governo israelense nesse momento. Defendia a ideia de que, qualquer fosse a decisão, deveria ter como objetivo a segurança dos cidadãos israelenses.

Termino aquele post dizendo que os cenários alternativos sempre serão objeto de debate. Uma decisão “errada” só poderia ser corretamente julgada se comparada com o resultado de suas alternativas. Mas isso é impossível de se fazer, pois as alternativas pertencem ao campo das ideias, não à realidade. Somos todos exímios profetas do passado, mas a verdade nua e crua é que as decisões são sempre tomadas em um ambiente em que “não há boas opções”, na feliz expressão usada por William Waack.