Debaclé com grife

Mercadante desafia: “por que a China é o país que mais cresceu nos últimos 40 anos?”, subentendo-se que foi pela ação decisiva do Estado chinês.

Que a China tem uma economia dirigida pelo Estado não há dúvida. O problema dessa correlação é ignorar todo o resto. A China foi palco do maior processo de urbanização da história humana. Essa migração dos campos para as cidades em poucas décadas proporcionou um aumento de produtividade excepcional, o que permitiu o aumento do PIB potencial do país. O mesmo fenômeno ocorreu no Brasil entre as décadas de 30 e 70, o que fez do Brasil um dos países de maior crescimento do mundo no período (sim, já fomos a China). Além disso, com a política do “filho único”, a China antecipou o bônus demográfico, potencializando os ganhos de produtividade. Por fim, a China investiu pesado em formação de sua mão de obra, o que se reflete, por exemplo, em seus resultados no PISA.

A comparação com os EUA é ainda mais risível. A maior e mais produtiva economia do planeta pode brincar de subsídios por um certo tempo. Afinal, os EUA imprimem o dólar, o que lhes dá algum fôlego. Aqui, como na China, os estímulos governamentais são concedidos em um ambiente propício para o crescimento econômico. E, no caso dos EUA, estão longe de serem os responsáveis pelo sucesso da economia norte-americana.

Mercadante olha apenas para os subsídios e “esquece” de todo o resto. Ele acha que basta dar capital barato para as empresas e a mágica acontecerá. Já tentamos isso (R$ 440 bilhões em 6 anos), resultando na maior recessão da história brasileira. Mas sabe como é, agora vamos fazer “do modo certo”, com o auxílio de luxo de uma economista italiana. Dessa vez, nossa debacle será de grife.

Política Industrial: lá vamos nós outra vez

Em artigo de ontem no Valor Econômico, o economista Luís Schymura defende a adoção de Políticas Industriais (PI) por parte de governos, mas “da maneira certa”. E qual seria essa maneira? Estabelecendo metas e descontinuando programas que não atingissem essas metas. Segundo Schymura, o problema não estaria na falta de visão do burocrata estatal, pois o empresário tampouco tem essa visão ex-ante do que vai dar certo, tudo tem risco. O problema está na insistência em programas que não dão certo. E o elixir que faria a PI estatal “dar certo” seria o estabelecimento e a mensuração de metas.

Uma das poucas vantagens de ser velho é já ter visto de tudo. Em 2011, a então presidente Dilma Rousseff lançou uma PI que faria inveja aos governos militares. O nome, como tudo no PT, era grandiloquente: Plano Brasil Maior. Tratava-se de uma mistura de subsídios e renúncias tributárias, que tinha por objetivo lançar o país para o próximo patamar. A desoneração da folha de pagamentos, que foi mais uma vez recentemente renovada, fazia parte desse pacote.

O que me chamou a atenção na época foram as metas extremamente bem definidas, na linha do que Schymura propõe como o ideal. Eram 10 metas:

  1. Ampliar o investimento em capital fixo de 18,4% para 22,4% do PIB
  2. Elevar a despesa empresarial em P&D de 0,50% para 0,90% do PIB
  3. Elevar o % de trabalhadores da indústria com pelo menos o nível médio de 54% para 65%
  4. Aumentar o Valor da Transformação Industrial/Valor Bruto da Produção de 44,3% para 45,3%
  5. Aumentar a participação das indústrias de média-alta tecnologia na produção industrial total de 30,1% para 31,5%
  6. Aumentar o número de micro/pequenas/médias empresas inovadoras de 37 mil para 58 mil
  7. Diminuir o consumo de energia de 150,7 tep/ R$ milhão para 137,0 tep/R$ milhão
  8. Ampliar a participação do Brasil na corrente de comércio internacional de 1,36% para 1,60%
  9. Aumentar a participação dos setores ligados à produção de energia sobre a produção industrial total de 64% para 66%
  10. Ampliar o número de domicílios com acesso à banda larga de 14 para 40 milhões.

Como se vê, não foi por falta de metas que o Brasil Maior foi mais uma PI que acabou no cemitério das boas intenções. Aliás, deve ter sido por isso que Dilma abandonou esse negócio de estabelecer metas…

Essa história de que PI é algo intrinsecamente bom, só precisando ser aplicada “da maneira certa”, me faz lembrar os defensores do socialismo como forma de organização econômica: trata-se da forma mais justa e humana de organizar os fatores econômicos, e só não deu certo em lugar nenhum do mundo porque seus princípios foram desvirtuados. O problema é que, tanto o socialismo quanto a política industrial dependem de um ser humano que não existe: virtuoso, abnegado, altruísta. Podemos ser tudo isso em nossas esferas privadas, mas quando se trata de relações econômicas entre iguais, cada um busca maximizar a sua posição. No final, aquela política bem-intencionada é capturada por aqueles que estão mais próximos do cofre, e que sempre tiram da cartola uma história triste para justificar o não atendimento das metas estabelecidas e, assim, manterem a sua mamatinha.

A grande vantagem do empresário sobre o burocrata é que a sua única meta chama-se lucro. Claro, o empresário também trabalha com metas: crescer x%, conquistar tais mercados, etc. Mas o que vai decidir se aquele “política” continuará viva ou não é o lucro. Não dando lucro, essa “política” chamada empresa será descontinuada. A não ser, claro, que seja sustentada por uma PI generosa, que permite que empresas-zumbi sobrevivam sugando a produtividade do país por anos e décadas. Aliás, coincidência ou não, abaixo do artigo do Schymura o jornal estampa a renovação dos incentivos para a indústria automobilística pela trocentésima vez nas últimas 7 décadas. Serve como um CQD deste post.

Melhor investir no McDonalds

R$ 727 milhões para criar mil empregos. Ou R$ 727 mil para cada emprego criado.

Não estou muito por dentro dos números do McDonalds, mas fazendo uma rápida pesquisa na internet, descobri que o investimento em uma franquia do Ronald é da ordem de R$ 3 milhões, e cada loja tem, em média, 50 funcionários. Isso resulta em uma média de R$ 60 mil investidos para cada emprego criado, ou 12 vezes menos do que o que vai ser investido pelo governo para criar empregos em Manaus. Isso, considerando que o montante investido pelo governo seja o total, que as empresas privadas não vão tirar nada do bolso. Se houver investimento privado conjugado (o que é provável), a conta fica ainda pior. De onde concluímos que, se o objetivo é gerar empregos, talvez fosse melhor o governo financiar franquias do McDonalds.

Mas, alguém dirá, não são empregos comparáveis. O emprego na indústria é um emprego de qua-li-da-de, como gosta de dizer o vice-presidente Alckmin, sibilando as sílabas. Sim, o que torna a coisa ainda mais cruel: o governo está investindo R$ 727 mil para criar um posto de trabalho que só pode ser ocupado por alguém no topo da pirâmide educacional, onde o desemprego e o sub-emprego são muito menores. Na verdade, onde falta mão de obra qualificada. É cruel, mas não é uma surpresa. O PT e os sindicatos que orbitam o partido sempre se preocuparam com a nata dos empregados públicos e privados brasileiros, aquela minoria que tem carteira assinada. A reforma trabalhista, por exemplo, foi e é amplamente combatida pelos sindicalistas (Lula incluído) por tentar aumentar o aquário onde os trabalhadores têm alguma proteção legal, pois isso retiraria “direitos” dos peixes que já estavam no aquário. “Queremos os mesmos direitos para todos” é uma falácia, pois, dada a triste falta de formação da mão de obra brasileira, o aquário é muito pequeno.

E nem vou discutir que estes R$ 727 milhões serão gastos com empresas bem estabelecidas, que poderiam acessar bancos e o mercado de capitais para financiar suas atividades. O lobby da Zona Franca é bastante eficiente.

Discutindo a relação

A parte mais divertida das análises de economistas da chamada “escola desenvolvimentista” são as justificativas de porque determinada política econômica não funcionou como o previsto. O jornalista Pedro Cafardo, em sua coluna de hoje, nos brinda com um desses momentos.

Cafardo parte de uma dissertação de mestrado em sociologia (!) para descrever o que deu ruim na relação entre o setor industrial e um governo que, supostamente, patrocinou toda a agenda desenvolvimentista. Segundo a coluna, a participação da indústria no PIB era de 16,9% em 2003, caindo para 11,7% em 2016. Ou seja, a indústria continuou a encolher durante os governos do PT, mesmo com todos os incentivos “corretos”.

O diagnóstico dos industriais, levantado pela dissertação, é que de nada adianta incentivos se os juros e o câmbio estão “errados”. Juros altos e câmbio apreciado neutralizariam a “política industrial”, tornando-a inócua.

A parte mais, digamos, pitoresca da análise está na avaliação de que, talvez, os empresários industriais, por serem também rentistas na pessoa física, não se posicionaram contra os juros altos. Ou seja, haveria um conluio entre os industriais e o setor financeiro para manter os juros altos e, assim, matar a indústria. Essa vai para a minha caderneta.

Há um vício de origem em toda essa análise: o de que juros e câmbio podem ser determinados discricionariamente pelo governo. Só não o faz porque o setor financeiro domina tudo e falta “força e coragem” (no dizer do bravo colunista) ao setor industrial para impor a agenda do desenvolvimento.

Juros e câmbio são o preço do dinheiro. A taxa de juros é o preço do dinheiro para as transações domésticas, enquanto o câmbio é o preço do dinheiro para as transações com o exterior. Ambos os preços são formados pelas expectativas dos agentes econômicos com relação ao que o governo, que é o monopolista da emissão de moeda, vai fazer. Quanto mais o governo não for confiável e sinalizar que não respeita a própria moeda, mais cara fica a mercadoria.

No caso específico dos incentivos à indústria, todos eles, de alguma maneira, pesam sobre o orçamento público, o que força os juros para cima. A esperança dos desenvolvimentistas é que incentivos localizados em “setores dinâmicos” da economia podem impulsionar o crescimento econômico, aumentando a arrecadação e mais do que compensando o custo dessas políticas. Já vimos, nos governos do PT, principalmente durante a gestão Dilma Rousseff, que este moto-perpétuo econômico ainda não foi inventado.

Se o governo tentasse, artificialmente, manter os juros baixos e o câmbio depreciado, o resultado seria mais inflação, o que não é um equilíbrio sustentável a longo prazo. Aliás, qualquer controle artificial de preços leva a distorções que, mais cedo ou mais tarde, precisam ser corrigidos. Controlar juros e câmbio são, em última análise, controle de preços. Não se trata de “força e coragem”, mas de “oferta e demanda”.

A coluna acerta apenas quando afirma que essa discussão ganha importância na medida em que o PT pode voltar ao poder no ano que vem. De fato, todas as declarações de Lula, até o momento, apontam para os mesmos erros de política econômica que marcaram as gestões do PT até 2016. Pelo visto, o chão é o limite para a participação da indústria no PIB.

Um governo verdadeiramente liberal

Em uma página, ficamos sabendo que a Infraero consumiu R$13 bi em 7 anos, incluindo os 49% de participação nas concessionárias que estão administrando os aeroportos. E daí, pensamos: “esse governo Dilma, incompetente, com ideias jurássicas sobre economia, queimando recursos com estatais que só servem como cabides de emprego, etc etc etc”

Aí, na página seguinte, temos uma matéria sobre a Emgepron, a estatal que foi capitalizada com R$7 bi no apagar das luzes do ano passado. Expressões como “fomento à indústria nacional”, “criação de empregos”, “efeito multiplicador”, estão todos na reportagem, o que me fez olhar de novo para a data do jornal, para conferir se não estava, por engano, lendo uma entrevista do Luciano Coutinho ou do Márcio Pochmann nos tempos do governo Dilma.

O governo Bolsonaro não só não privatizou nenhuma estatal diretamente controlada pela União nesses quase 14 meses de governo, como criou mais uma, a NAV, para substituir a Infraero. Como a Infraero ainda não foi embora, as duas estão convivendo. E consumindo recursos.

Mas está tudo bem, este é o primeiro governo verdadeiramente liberal em 500 anos de história. Eu estou tranquilo.

Mais do mesmo

E o Estadão publica mais um editorial clamado por uma “política industrial”, que devolva a indústria brasileira aos seus heydays.

A crítica, obviamente, é que esse governo “não está fazendo nada”. Bem, não foi por falta de “fazer alguma coisa” que chegamos aonde chegamos. Desde a CSN de Getúlio, passando pela indústria automobilística de Kubitscheck, até os PNDs e Lei da Informática dos governos militares e de Sarney, o Brasil construiu sua indústria à base de muito incentivo e proteção.

Nos governos Lula/Dilma “política industrial” passou a ter um status diferenciado. Foram muitos “planos, metas e instrumentos” anunciados, como pede o editorial do Estadão. Ontem postei vídeos de Paulo Skaf reconhecendo os méritos dos governos petistas neste campo. Os resultados? O próprio editorial reconhece: queda de manufaturados nas exportações de 59% em 2000 para menos de 40% nesta década.

Este ano não dá nem para colocar a culpa no câmbio e nos juros, inimigos declarados da FIESP. Com o dólar acima de R$4 e os juros em 4,5%, difícil dizer que estão “atrapalhando a indústria”.

“Planos, metas e instrumentos” são a coisa mais fácil de se fazer. O papel aceita tudo. O duro mesmo é fazer a coisa certa, o que demanda o trabalho não de um governo, mas de uma geração. Estamos hoje colhendo os frutos dos “planos, metas e instrumentos” anunciados com banda e fanfarra pelos governos anteriores. Mas o editorialista do Estadão prefere pedir mais do mesmo.

Segure sua carteira

Estes são trechos de uma entrevista do presidente do IEDI, o think tank do setor industrial.

Começa por reclamar da falta de atenção dos candidatos à “questão industrial”.

O repórter, querendo explorar um pouco a tal da “questão industrial”, pergunta quais seriam as condições para a volta do investimento no setor.

O presidente do IEDI elenca 3 fatores: diminuição da ociosidade da indústria, aumento da demanda e condições macroeconômicas favoráveis.

Bem, as duas primeiras estão correlacionadas: a capacidade ociosa só irá diminuir quando a demanda reaquecer. A isso chamamos de crescimento econômico, foco de todos os candidatos. Já com relação às tais “condições macroeconômicas favoráveis”, ele só pode estar se referindo ao câmbio, uma vez que a taxa de juros é a menor da história. Será que o dólar a R$4,20 finalmente vai funcionar para a indústria?

Mas daí, cutucando um pouco mais, vem a verdadeira agenda da indústria: subsídios. Desde que seja para “inovação”, claro. O Brasil registrou pouco mais de 4 mil patentes em 2016. Na China foram 400 mil. Cem vezes mais. Países muito menores e sem tradição de inovação tecnológica, como Austrália e Canadá, registraram mais de 20 mil patentes cada.

Isso porque o BNDES atingiu 10% do PIB em empréstimos, incluindo programas de inovação. Sem contar subsídios diretos, como o falecido Inovar-Auto. Quanto mais seria necessário?

Por isso, eu sempre digo: quando entidades empresariais vão à Brasília, segure bem a sua carteira.

A Política Industrial certa

Então ficamos assim: dar incentivos para a indústria não está errado. Erradas foram as escolhas feitas. Mesmo que, na época, tenham sido aplaudidas de pé por estes mesmos que agora as criticam.

Quer dizer: o erro não está na ideia de política industrial, mas na sua implementação porca. Que sempre é aplaudida até o momento em que dá com os burros n’água, quando então será acusada de não ser a política industrial “certa”.

E assim vamos, de política industrial em política industrial, enquanto o trabalho árduo de simplificação tributária, desburocratização, qualificação de mão de obra, enfim, tudo aquilo que aumentaria a produtividade do país, vai ficando para as calendas.