A diplomacia de Lula: propaganda e realidade

A máquina de propaganda do PT está a todo vapor, com a prestimosa ajuda de jornalistas dispostos a servir de assessoria de imprensa, ao invés de apurar os fatos.

Hoje, duas páginas do Estadão movem para frente a história de que o Brasil de Lula está se tornando um ator relevante no cenário diplomático global. Na primeira, uma notinha diz que o Brasil fez duas contribuições relevantes para a resolução da ONU que condena, pela enésima vez, a invasão da Ucrânia pela Rússia. A primeira teria sido a inclusão de um pedido de que “os dois lados cessem ações hostis” (mais à frente comento o absurdo dessa proposta). A segunda seria a inclusão da “necessidade de esforços diplomáticos para alcançar a paz”.

Na segunda página, Eliane Cantanhêde afirma que tanto a Rússia quanto a Ucrânia mandaram “leves sinais” de que estariam aceitando as propostas de Lula. No caso da Rússia, o vice-ministro das relações exteriores “agradeceu ao Brasil por não enviar munições à Ucrânia e afirmou que Putin estuda a proposta de paz de Lula”.

Dá vontade de gargalhar, não fosse algo trágico. Essa posição da Rússia é muito clara sobre a quem interessa a posição do governo brasileiro. Em seguida, Cantanhêde afirma que o “cessar-fogo imediato” foi um elemento da resolução pedido pela própria Ucrânia, em linha com o que Lula defende, e que isso seria um sinal de aceitação da mediação do presidente brasileiro. Veremos que a informação está factualmente incorreta, mas mesmo que estivesse certa, ligar isso com Lula é muita vontade de babar ovo.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, fui às fontes, como os jornalistas deveriam ter feito. A ONU publica não somente as resoluções, como também os debates que deram origem às resoluções. No caso da última resolução, foram dois dias de debates, na quarta (22) e quinta (23). Fui dar uma busca nas atas desses debates (aqui e aqui) pelas intervenções do Brasil. No primeiro dia não há nenhuma. A intervenção no 2o dia foi a seguinte:

O representante do Brasil disse que sua delegação votará a favor da resolução, pois a Assembleia Geral deve respeitar os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. Enfatizando que o elemento mais importante do texto é o apelo à comunidade internacional para redobrar os esforços para alcançar uma paz justa e duradoura na Ucrânia, ele disse que seu país considera o pedido de cessação das hostilidades no parágrafo dispositivo 5 um apelo a ambos os lados para deter a violência sem pré-condições“.

Estão aí os dois elementos levantados pelos jornalistas: esforços diplomáticos e cessar-fogo. O problema é que nem um e nem o outro ponto são o que os jornalistas dizem ser, os pontos devem ter sido soprados pelo governo. Vejamos.

No caso dos esforços diplomáticos, este é um ponto que já tinha sido mencionado, por exemplo, na resolução votada em outubro do ano passado. Em seu parágrafo 7, podemos ler, entre outras coisas: “… uma resolução pacífica do conflito através diálogo político, negociação, mediação e outros meios pacíficos, …”. Então, os tais “esforços diplomáticos” não foram uma ideia do Genial Guia dos Povos, mas algo que faz parte da própria natureza da ONU. Isso é tão óbvio que dá até vergonha de ter que explicar.

Mas é no segundo ponto que se encontra o ponto chave da posição brasileira. A intervenção brasileira nos debates fala de “deter a violência sem pré-condições”. Este “sem pré-condições” não está na resolução. Podemos ler no tal parágrafo 5:

Reitera a sua exigência de que a Federação Russa retire imediata, completa e incondicionalmente todas as suas forças militares do território da Ucrânia, segundo suas fronteiras reconhecidas internacionalmente, e apela à cessação das hostilidades“.

Note 1) toda a frase anterior ao pedido de fim das hostilidades, que claramente coloca a responsabilidade sobre a Rússia em relação a este movimento e 2) a ausência do “sem pré-condições” pedido pela delegação brasileira nos debates.

Ou seja, a resolução nem mostrou uma novidade em relação aos esforços diplomáticos e nem acolheu a sugestão brasileira de um cessar-fogo incondicional. E, obviamente, não foi a Ucrânia que pediu a inclusão dessa última cláusula, como sugere Cantanhêde, basta ler a intervenção da Ucrânia nos debates. Portanto, a festinha dos jornalistas em torno da diplomacia de Lula parece mais um trabalho de assessoria de imprensa do que jornalismo.

Até aqui, uma crítica ao jornalismo. A partir daqui, uma crítica (ou um lamento) sobre a posição brasileira em relação ao conflito.

A delegação brasileira pede um “cessar-fogo sem pré-condições”. Procurei, nas atas dos debates, os países que pediram um cessar-fogo ou o fim das hostilidades. Além do Brasil, Peru, Tunísia, Costa Rica, México e China pediram um cessar-fogo. Mas o Brasil foi o único que pediu um cessar-fogo a ambos os lados sem pré-condições. Desculpem-me a crueza, mas às vezes uma imagem xucra transmite melhor a mensagem: o pedido do Brasil é equivalente a pedir para que estuprador e estuprada parem de se machucar mutuamente sem pré-condições, ou seja, o estuprador pode manter o pênis dentro da vagina da estuprada, desde que parem de brigar. É ultrajante.

Encerro com a posição do Japão nos debates, um exemplo de como uma nação civilizada deveria se posicionar sobre este conflito:

HAYASHI YOSHIMASA, Ministro das Relações Exteriores do Japão, enfatizou que o projeto de resolução é sobre a paz. A paz deve ser baseada em princípios, apontou, acrescentando que, embora as hostilidades devam cessar imediatamente, isso não produziria necessariamente uma paz abrangente, justa e duradoura. “E se um membro permanente do Conselho de Segurança lançasse uma agressão contra sua pátria, tomasse seu território e então cessasse as hostilidades, pedindo paz?” ele perguntou, chamando tal paz de injusta. Seria uma vitória para o agressor se tais ações fossem toleradas e abririam um terrível precedente para o resto do planeta, disse ele, acrescentando que o mundo voltaria à selva, seja em terra ou no mar. Conclamando a Federação Russa a retirar suas tropas imediata e incondicionalmente da Ucrânia, ele observou que a Assembleia Geral exigiu isso, assim como o Secretário-Geral e a Corte Internacional de Justiça. Infelizmente, acrescentou, “a Rússia aparentemente não se importa com as resoluções da Assembleia Geral e as ordens da Corte Internacional de Justiça, como se fossem apenas pedaços de papel inútil”, disse ele, destacando também seu abuso do poder de veto e sua retórica irresponsável como um Estado com armas nucleares.

Putin merecia o benefício da dúvida?

Em meu último artigo sobre a guerra, desenvolvi a hipótese de que os países do leste europeu poderiam ter o mesmo destino da Ucrânia se não tivessem se aliado à OTAN. A evidência, para mim, foi justamente o fato de esses países QUEREREM se aliar à OTAN, mesmo conhecendo o risco de serem mal-entendidos pela Rússia. Supus que ninguém conhece melhor a “alma russa” do que os seus vizinhos.

Pois bem, fui inundado de artigos de respeitados especialistas afirmando o contrário (como se eu já não tivesse lido todos eles): que a Rússia estava quieta no seu canto, e foi provocada pela OTAN. Hoje, o Estadão traz uma entrevista com um especialista em Rússia, que nao não é um zé mané palpiteiro como eu, e que tem o mesmo ponto de vista do meu artigo.

Significa que ele está certo? Não. Significa apenas que essa é uma discussão em aberto. A história é uma ciência em que o contrafactual é impossível. Portanto, quem afirma com certeza que “teria acontecido isso se aquilo”, ou “não teria acontecido isso se não aquilo” está apenas chutando, por mais especialista que seja.

Historiador é como economista: é muito bom para explicar o passado, mas péssimo para desenhar o futuro. Existe um viés bem conhecido em investimentos chamado “hindsight”. Esse viés nos leva a acreditar que eventos que ocorreram eram óbvios, dava para prever com relativa facilidade. Como sempre vai haver um historiador ou um economista que “previu” aquele cenário (tem sempre um monte de gente falando um monte de coisa), o que foi dito é recuperado e toma ares de profecia, com a ilusão da previsibilidade se estabelecendo. Falta, obviamente, o contrafactual: o que teria acontecido se as premissas da previsão não tivessem se concretizado.

Portanto, é preciso tomar cuidado ao concluir rapidamente sobre a direção da causalidade em eventos históricos. É possível que Putin estivesse agora em seu canto se a OTAN limitasse a sua presença às fronteiras da Alemanha? Sim. Assim como é possível que estivesse agora bombardeando Varsóvia, como está fazendo em Kiev. Tudo é possível. E, como tudo é possível, os países do leste europeu não quiseram jogar com a sorte. Não acho uma atitude condenável.

Você compraria um carro usado deste homem?

Na batalha das narrativas sobre a guerra na Ucrânia, ganhou força na esquerda uma que coloca a culpa do conflito, adivinha, nas costas dos Estados Unidos.

A narrativa é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da União Soviética, estavam os russos quietos no seu canto, lambendo as feridas do orgulho ferido por terem sido rebaixados de superpotência para mercado emergente, quando os Estados Unidos, do nada, levam a OTAN até o quintal dos russos. Estes, sentindo-se ameaçados, desenharam uma linha vermelha na Ucrânia e, quando esta ameaçou juntar-se também à aliança ocidental, não restou outra alternativa a Putin do que ocupar o país vizinho. Que, by the way, historicamente faz parte da Rússia, como deixou claro o mandatário russo.

Para reforçar a imagem, perguntam, no melhor estilo xeque-mate, como os EUA reagiriam se o México fosse aliado da Rússia e esta colocasse mísseis nucleares ao longo do Rio Grande, a poucos minutos das grandes cidades americanas. A conclusão, óbvia, é que os Estados Unidos não deixariam a coisa chegar neste ponto, e invadiriam o México para evitar que isso acontecesse.

O que dizer?

Bem, essa narrativa seria uma versão crível dos fatos se tivesse alguma lógica. Para entender por que se trata de uma versão discutível dos fatos, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para 1949, quando a OTAN é constituída.

A Europa vinha de uma guerra terrível em várias dimensões. Havia uma unanimidade em torno da ideia de que era necessária uma estrutura militar permanente que prevenisse que algo semelhante ocorresse novamente. O diagnóstico é que o militarismo nacionalista, concretizado na ascensão nazista na Alemanha, precisaria ser evitado a todo custo. Para isso, duas coisas eram necessárias: uma presença militar norte-americana permanente no continente europeu e uma maior integração europeia em torno de ideias democráticos. A presença norte-americana foi uma quebra de paradigma, pois os EUA sempre resistiram muito a sair de seu casulo, tendo sua entrada na 2a guerra sido feita a fórceps. E a ideia de uma integração europeia com suporte em uma aliança militar era nada mais do que uma rendição ao fato de que boas intenções somente se concretizam na base da, digamos, dissuasão militar.

O estabelecimento da OTAN se precipita em 1949, quando a União Soviética testa a primeira bomba nuclear. Os EUA não eram mais a única potência nuclear, e os europeus ficam alarmados. Este é um primeiro fato importantíssimo para entender o que vem a seguir. Os europeus (no caso, Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido) não buscam a União Soviética como aliada, mas os Estados Unidos. Parece uma escolha óbvia e natural, mas não é. A União Soviética foi aliada dos Estados Unidos e Reino Unido contra a Alemanha. Mas aquela aliança havia sido circunstancial; a União Soviética tinha um regime completamente alienígena ao espírito da aliança militar que se estava formando. É bom sempre ter isso em mente quando analisamos os acontecimentos que se seguiram desde então: não estamos falando de dois polos opostos e equivalentes. Não. De um lado temos uma aliança eminentemente defensiva, que tem como objetivo evitar o ressurgimento do militarismo nacionalista e suportar a integração do continente europeu em torno de ideias democráticos. Do outro, temos uma ditadura sanguinária, que tem como objetivo implementar o regime comunista a ferro e fogo, e que não tem pudor em usar o peso da máquina estatal contra seus próprios cidadãos para atingir seus objetivos. Portanto, não se tratava de dois polos opostos simétricos, cada um buscando seus próprios interesses, com se tanto fizesse que o mundo, hoje, fosse dominado pelos Estados Unidos ou pela União Soviética.

A OTAN, portanto, foi formada com os objetivos de evitar uma escalada militarista nacionalista e promover a integração europeia, aos quais foi acrescentado um terceiro objetivo: fazer frente à agressividade (agora nuclear) da União Soviética. Este terceiro objetivo acabou por ser o dominante nos anos seguintes, até 1991, quando a União Soviética desaparece. Mas é bom ter em mente os dois primeiros objetivos quando nos determos sobre os acontecimentos pós-1991.

A história segue e, em 1955, a Alemanha Ocidental adere à OTAN, o que leva a União Soviética a estabelecer, em seguida, o Pacto de Varsóvia, a união militar da URSS com seus satélites. Sim, aqui temos uma reação da União Soviética a uma ação dos Estados Unidos. Mas, para entender esse movimento da OTAN, é preciso voltar um pouco no tempo, para 1945, quando se encerra a 2ª Guerra. As potências aliadas dividem a Alemanha em 4 zonas administrativas, cada uma delas controladas, respectivamente, por Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Com o passar do tempo, foi ficando claro que os países democráticos estavam de um lado e a União Soviética estava do outro. Em 1949, dois países surgiram no lugar da antiga Alemanha: a Alemanha Ocidental, correspondente à ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França, e a Alemanha Oriental, correspondente à ocupação da União Soviética. A Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer, percebendo o risco de um enclave soviético em sua fronteira (a Alemanha Oriental), solicitou a admissão na OTAN. Portanto, a admissão na OTAN veio em resposta à presença ameaçadora de uma potência nuclear não confiável em suas fronteiras. Este mesmo tipo de raciocínio servirá como base para os pedidos de admissão pela OTAN dos antigos membros do Pacto de Varsóvia e das antigas repúblicas soviéticas anos depois. Tudo se resume na palavra CONFIANÇA. Voltaremos a isso mais à frente.

Avançando no tempo, temos a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. A Federação Russa, ou simplesmente Rússia, passa a ser a herdeira da antiga União Soviética. Sob a liderança de Boris Yeltsin, a Rússia parece ter se tornado um país democrático e capitalista, o que fez com que Francis Fukuyama escrevesse, em 1992, o seu famoso ensaio “O Fim da História”, tomando como certa a vitória do regime democrático sobre o autoritário, e do capitalismo sobre o socialismo, para todos os efeitos práticos. Esta leitura, vista de hoje, parece um tanto ingênua, ainda que, de fato, até a China seja capitalista hoje em dia. Mas um mundo liderado por apenas uma superpotência benigna, em uma espécie de “pax americana”, parece uma visão cada vez mais distante da realidade.

Voltando. Todos sabemos em que direção as pessoas correram quando o muro de Berlim caiu. Da mesma forma, os antigos países do Pacto de Varsóvia procuraram correr para longe da esfera russa assim que puderam. Novamente: é interessante observar que países como Grécia ou Turquia, que faziam parte da OTAN desde 1952, não se interessaram em correr para o colo da Rússia. Mas Polônia, República Tcheca e Romênia correram para o colo dos Estados Unidos em 1999, sendo admitidas pela OTAN naquele ano.

Alguns podem se perguntar por que a OTAN não seguiu o mesmo caminho do Pacto de Varsóvia, e foi simplesmente desativada com o fim da União Soviética. Para entender por que isso aconteceu, é útil voltar lá no início do texto, e relembrar os objetivos fundantes da OTAN: evitar uma escalada nacionalista militar na Europa e suportar militarmente a integração europeia. Para entender por que estes dois objetivos ainda davam sentido à existência da OTAN, basta lembrar que a 2ª Guerra havia terminado há menos de 50 anos, e ainda estava viva na memória os seus horrores. Assim, a presença militar norte-americana no continente europeu e a adesão de mais países ao tratado ornava com os objetivos de manter a paz no continente. Como sabemos, o preço da paz é a eterna vigilância.

Nesse sentido, é digno de registro o estabelecimento, em 2002, de um Conselho OTAN-Rússia, em que a Rússia, já sob a direção de Putin, foi colocada em igualdade de condições com os outros membros da aliança para discutir questões de segurança. Este Conselho ainda existe formalmente, mas perdeu totalmente o seu sentido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. No site do Conselho, o último documento disponível é de 2013. De qualquer forma, fica claro que os objetivos da OTAN incluíam a cooperação com a Rússia, em busca da manutenção da paz no continente europeu.

A OTAN, em linha com seus objetivos, sempre deixou as portas abertas para o ingresso de novos membros. A pergunta, portanto, não é porque a OTAN (leia-se Estados Unidos) admitiu países do Pacto de Varsóvia em 1999 e antigas repúblicas socialistas em 2004. A pergunta correta é: porque esses países ESCOLHERAM fazer parte da OTAN.

Como mencionado acima, a palavra-chave é CONFIANÇA. No final do dia, tudo se resume a saber de quem você compraria um carro usado, de Putin ou de Biden. Não que Biden (ou Trump, ou qualquer outro ex-presidente norte-americano) seja pessoalmente mais confiável do que Putin. A questão são os pesos e contrapesos que só regimes democráticos maduros são capazes de garantir. Biden não é um ditador, assim como não foram nenhum dos seus antecessores (o que às vezes exaspera quem espera soluções “rápidas” para os problemas), de modo que a estrutura é mais confiável do que a estrutura russa de poder. É por isso, e somente por isso, que Letônia, Estônia, Lituânia e uma longa lista de países procuraram proteção no guarda-chuva da OTAN. Os ucranianos devem estar se lamentando não terem sido tão ágeis quanto seus antigos companheiros de União Soviética.

Da forma como está sendo contada a versão da “Rússia defendendo-se de uma ameaça ocidental” para justificar o ataque à Ucrânia, a coisa parece uma profecia autorrealizada: com medo da Rússia, os países da antiga União Soviética correram para a OTAN, o que fez com que a Rússia efetivamente atacasse, confirmando os receios que levaram os países do leste europeu a fazer o movimento que fizeram. Segundo essa versão, se esses países tivessem ficado no seu canto, Putin agora estaria se dedicando a fazer bolinhos de chuva e tricotando no Kremlin.

É esta parte da versão que não é crível. Putin nunca foi confiável. Semana passada, a Economist publicou artigo da primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, que chamou Putin de um “mentiroso patológico”. Segundo ela, ditadores só conhecem o idioma da brutalidade. Sim, a Lituânia pegou a boia salva-vidas da OTAN em 2004.

Alguém poderá dizer que é compreensível o temor das ex-repúblicas soviéticas, o que não é compreensível é que a OTAN tenha provocado o tigre com vara curta. Quem faz esse raciocínio não entende a lógica do nacionalismo militarista, justamente aquele que a OTAN tem como objetivo combater: a chance de surgimento de um regime doidivanas é tanto menor quantos mais países são agregados ao guarda-chuva militar. Não é à toa que, em seu site, a OTAN afirma que “está aberta a qualquer outra nação europeia em posição de implementar os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”.

A pergunta correta, portanto, é quem é a Rússia na fila do pão para impedir que a Ucrânia faça a sua adesão à OTAN. O raciocínio da guerra fria, de que o avanço da OTAN significa uma ameaça existencial à Rússia faz sentido somente na cabeça paranoica de um ditador tirânico. Que Putin pense assim, é compreensível. Que analistas ocidentais, movidos por um anti-americanismo atávico, comprem essa narrativa, é de chorar.

Os Estados Unidos e seus aliados não são anjos de bondade, todos têm os seus interesses e seus erros históricos. Isso é uma coisa. Outra coisa é colocar os regimes democráticos ocidentais no mesmo nível de confiabilidade da governança russa, como se se tratasse de uma simetria perfeita. Não é. A democracia tem muitos defeitos, mas, como dizia Churchill, é o pior regime com exceção de todos os outros. Isso inclui o autoritarismo russo, que não é confiável de maneira alguma.

As chances de uma guerra nuclear

Um desequilibrado que entra em um shopping lotado amarrado com explosivos e dizendo que vai levar tudo para os ares se não lhe permitirem assaltar as lojas só terá sucesso em seu intento se a sua ameaça for crível. Ou seja, se as pessoas acreditarem que se trata realmente de um potencial suicida que está disposto a cumprir a sua ameaça.

O fato de termos mais de uma potência nuclear faz com que as armas nucleares funcionem mais ou menos como o cinturão de explosivos amarrado à cintura. Qualquer um dos lados que aperte o botão estará assinando a própria sentença de morte. Como, em princípio, não há nenhum desequilibrado mental à frente de uma potência nuclear a ponto de condenar suas próprias cidades à mais horrível das mortes, os arsenais nucleares servem somente para efeitos dissuasórios. Ou seja, para transformar qualquer ataque nuclear em uma ação suicida. Não por outro motivo, na única ocasião em que uma bomba nuclear foi lançada sobre uma cidade, a potência atacante era a única que dominava a tecnologia. Pouquíssimo provável que o ataque tivesse ocorrido se o Japão pudesse revidar, jogando uma bomba atômica sobre, por exemplo, Los Angeles.

Portanto, esqueça essa história de arsenal nuclear. O que realmente importa são as forças convencionais. Aliás, se bomba atômica resolvesse guerra, o investimento em armamentos convencionais seria um desperdício de dinheiro. A Rússia sabe disso. E, mesmo sendo um país com PIB bem menor do que seus adversários da aliança ocidental (mais exatamente, 27 vezes menor), conta com um arsenal de respeito. No gráfico abaixo, podemos observar o poder de fogo da OTAN e da Rússia. Acrescentei uma coluna da OTAN sem EUA e Canadá, dado que o engajamento de forças do outro lado do Atlântico é mais complexo.

Chama a atenção o número de equipamentos de terra (tanques), que praticamente se iguala a toda a aliança ocidental. De qualquer modo, parece claro que, em uma guerra total entre Rússia e OTAN, a vitória seria da aliança ocidental, mas não seria um passeio no parque.

Antes de continuar, um parênteses. A Alemanha anunciou um aumento de praticamente 50% em seus gastos militares. Hoje, a Alemanha tem um budget de US$ 50 bilhões, aumentaria para algo como US$ 75 bilhões. Parece muito, não é mesmo? Bem, esse novo montante seria algo como 2% do PIB alemão. A Rússia gasta cerca de 9% de seu PIB com defesa, o que resulta em US$ 150 bilhões. Os EUA gastam 3,5% do seu PIB com defesa, US$ 770 bilhões. Não é à toa que o Trump reclamava que os EUA levavam a OTAN nas costas. Fecha parêteses.

A Rússia, hoje, tem um poder militar convencional de respeito. Invadiu um país soberano e pode derrubar o seu governo porque tem essa força militar, e porque a OTAN não quer se envolver militarmente com um país não-membro da aliança. Aliás, outro parênteses: não deixa de ser curioso que as forças chamadas democráticas deixem de defender militarmente uma democracia agredida somente pelo fato de não haver um pedaço de papel assinado. É uma bela desculpa. Fecha parênteses.

A questão que tira o sono é até que ponto Putin estaria disposto a atacar um membro da OTAN para melhorar a sua própria segurança. Os países bálticos (Estônia, Lituânia, Letônia) são os alvos mais óbvios, por fazerem fronteira. Caso ocorra este movimento, o que parece pouco provável visto de hoje, talvez tenhamos uma guerra de grandes proporções na Europa. Mas não estaremos, por isso, mais próximos de uma catástrofe nuclear. Tratar-se-á de uma guerra convencional, como as que tivemos no passado, ainda que com tecnologia superior e ainda que seja entre potências nucleares. Ninguém vai apertar o botão, pois isso significaria suicidio.

A menos que apostemos que a psicopatia tenha definitivamente tomado o lugar da brutal razão geopolítica.

Apertando o torniquete

O Banco Central Russo aumentou a taxa Selic deles de 9,5% para 20%. Além disso, obrigou que todas as empresas exportadoras convertam ao menos 80% de suas receitas para rublos, não sendo permitido manter esse montante no exterior.

Essas medidas fazem o receituário clássico de economias quebradas, sem reservas, como a Argentina. Não são compatíveis com uma economia que tem mais de US$600 bilhões de reservas e superávit no balanço de pagamentos. O que aconteceu com “as grandes reservas” que permitiriam à Rússia lutar meses, ou mesmo anos, sem se preocupar com suas finanças?

Simples: como todo país emergente, a moeda da Rússia é um mero papel pintado. Portanto, suas reservas estão em moedas como dólar, euro e libra esterlina. Ocorre que reservas nessas moedas foram congeladas no sábado, o que representa, mais ou menos, 2/3 de todas as reservas russas. Sobraram basicamente reservas em ouro e moedas inúteis, como o iuan chinês, que, como moeda de festa junina, só pode ser usado no arraial chinês. E o ouro, só dá pra vender no mercado negro. Enfim, para todos os efeitos, a Rússia ficou sem reservas para defender a sua moeda, que já ultrapassou 100 rublos por dólar.

Parece que as tais sanções financeiras estão realmente apertando o torniquete de Putin. Vamos ver as cenas dos próximos capítulos.

Confiança é o nome do jogo

Leio hoje no Valor que Rússia e China aumentaram as transações em moeda local entre si. Agora, representam 24% do total do comércio exterior entre os dois países. O restante ainda é em dólar (46%) e Euro (30%).

Alguns poderiam se perguntar, afinal, por que essa dependência do dólar? Não poderiam as nações simplesmente transacionar em suas próprias moedas entre si?

A resposta a essa pergunta vai na forma de uma outra pergunta: se você fosse um empresário brasileiro e estivesse vendendo para a Argentina, você aceitaria o pagamento em pesos argentinos? Ou exigiria dólares?

Na última vez que fui à Argentina, em 2014, troquei todos os meus dólares por pesos argentinos, para poder pagar as coisas. O comércio de lá aceitava (e ainda aceita) dólares também, mas o câmbio não era muito favorável. Bem, no final da viagem sobraram alguns pesos. Só para testar, fui ao Banco de La Nacion do aeroporto de Ezeiza para tentar trocar os pesos por dólares. Obviamente não tive sucesso. Nem o banco estatal aceitava a moeda do país.

Moeda é, acima de tudo, confiança. Aquele papel pintado só vale alguma coisa porque por trás existe um governo confiável, suportado por um sistema jurídico que funciona. Você compraria um carro usado do Putin? E do Xi Jinping? Pois é.

Ok, você também não compraria um carro usado do Trump. Mas aí entra a força das instituições. Trump vai durar mais alguns meses ou, no máximo, mais 4 anos. Todos sabem disso, todos confiam que isso acontecerá. A dívida americana é gigantesca, mas todos confiam de que receberão o seu dinheiro de volta, se assim o quiserem. Aliás, receberão em dólares, o papel pintado que vale tanto quanto a dívida.

Mesmo no caso do Euro, a confiança é menor. Trata-se de uma moeda construída há menos de 30 anos, com uma governança que depende basicamente da Alemanha. Na verdade, a confiança no Euro é a confiança na Alemanha. Os detentores do Euro confiam que, se um dia a moeda desaparecer, poderão trocá-la por marcos alemães. Mas trata-se de um arranjo mais precário do que o dólar.

Assim, vejo essas notícias com um certo ceticismo. O repórter entrevista um professor de Harvard que credita ao dólar três vantagens: inflação baixa, mercado doméstico gigantesco e mercado financeiro enorme e sofisticado. É verdade, mas isso a Europa também tem. Então, o que determina a predominância é a confiança de que a poupança em dólar é mais segura. Não vejo isso mudando em um horizonte de tempo visível.