A política econômica de Lula

O mercado financeiro tem uma certa nostalgia do governo Lula. Principalmente do primeiro mandato, até o Mensalão, em 2005.

Em 2002, na medida em que ia ficando cada vez mais claro que Lula seria o próximo presidente da República, o mercado foi estressando. Era cada vez mais difícil vender títulos públicos que venciam depois de 2002, pois era real o temor de um calote da dívida pública. O dólar bateu em R$3,95 no pior momento, o que equivaleria hoje a mais de R$8,00 se corrigirmos pela inflação do período.

Lula, muito esperto, sabia que não tinha como governar com o mercado fazendo um ataque especulativo contra a moeda. Iniciou, então, a tática que até hoje arranca suspiros dos faria limers. Em primeiro lugar, publicou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, que poderia ter recebido o nome de “Carta ao Povo do Mercado Financeiro”. Neste texto de junho de 2002, Lula promete respeitar os contratos e preservar o superávit primário necessário para estabilizar a dívida pública.

Mas, como dizem os americanos, talk is cheap. Os mercados continuaram a piorar até outubro, com o dólar batendo o pico às vésperas das eleições. Lula precisou mostrar serviço.

A primeira coisa que fez depois de eleito foi procurar uma equipe econômica que não desse margem a dúvidas. Sob a liderança de Antônio Pallocci, que também arranca suspiros de saudades na Faria Lima, vieram para o governo Lula nomes como Joaquim Levy e Marcos Lisboa. E, para não deixar margem a dúvidas, Henrique Meirelles foi escalado para o Banco Central. Um verdadeiro dream team, para decepção de Mercadante, Beluzzo e a turma da Unicamp.

A combinação de políticas ortodoxas com o superciclo de commodities fez o trabalho: crescimento econômico com equilíbrio fiscal. Com isso, o governo Lula acumulou gordura para implementar a sua real agenda, que já estava clara na Carta ao Povo Brasileiro. Toda o programa desenvolvimentista da década de 50 já estava lá: estímulo à indústria e substituição de importações. Fora o inchaço da máquina pública. A carta fala de um “outro modelo”, que seria contraposto ao que FHC havia implementado. O fato é que, até 2005, o modelo adotado foi o mesmo.

Livre do Mensalão e com Pallocci caído em desgraça, Lula chama Dilma e Mantega para ajudá-lo a implementar esse “outro modelo”. O resto é história: no começo, queimou as gorduras acumuladas. Depois, o país começou a se auto-fagocitar.

Quando Lula diz que vai “acabar com o teto de gastos”, está falando algo em que realmente acredita. A esperança do mercado é que, como estamos ainda longe das eleições, Lula ainda esteja falando para os seus. Quando for a hora H, outra Carta aos Brasileiros será editada, prometendo disciplina fiscal. E, mais do que isso: o mercado acredita que a própria deterioração dos preços leva um governante pragmático como Lula a adotar políticas responsáveis. Afinal, ele já mostrou que é capaz disso uma vez.

O problema, no entanto, não é o que ele vai fazer a zero de jogo. O problema é a sua preferência revelada. Aos poucos ele vai adotar a mesma agenda econômica que levou Venezuela e Argentina para o buraco em que estão. Alguns têm na memória que o governo Lula foi muito bom do ponto de vista de políticas econômicas, depois Dilma veio e estragou tudo. Nada mais falso: Lula plantou Dilma, não somente como candidata, mas em termos de políticas econômicas. Quando Dilma assumiu, o BNDES já representava quase 10% do PIB, por exemplo. Não é coincidência que Dilma tenha mantido Mantega como seu ministro da Fazenda.

As pessoas rechaçam rupturas, e Lula é muito esperto para patrocinar uma. Mas as pessoas caminham tranquilamente ladeira abaixo, sem perceber que estão descendo em direção a um poço sem fundo. A subida de volta é muito mais sofrida. O PT na presidência não é perigoso pelo que vai fazer em 2023. O PT na presidência é perigoso pelo que vai fazer nos 20 anos seguintes.

Sinuca de bico

Este artigo é uma espécie de continuação do anterior, em que comentamos a carga tributária brasileira. Vamos falar, agora, das despesas.

Começo com algumas manchetes que estamparam os jornais nos últimos dias:

O que aconteceu? O governo malvadão resolveu mostrar sua verdadeira face? Ou, em um acesso de loucura, decidiu dar um tiro no próprio pé, minando sua própria popularidade?

Nem um coisa, nem outra. Foi muito simples o que aconteceu: acabou o dinheiro.

Quer dizer, dinheiro tem. O que acabou foi o dinheiro do que chamamos de verbas discricionárias. O orçamento brasileiro é extremamente engessado. Como podemos ver na tabela abaixo, elaborada pela Instituição Financeira Independente, órgão do Senado, uma parte relevante das despesas são obrigatórias, ou seja, estão carimbadas por alguma lei. Inclusive, várias delas são nada menos que constitucionais.

As duas maiores despesas obrigatórias são a Previdência e Gastos com Pessoal. Somando todas as assistências sociais (Previdência, Seguro-Desemprego, BPC e Bolsa-Família), temos um total de 54,9% das despesas. Os Gastos com Pessoal, por sua vez, somam 21,4% das despesas. Outras despesas obrigatórias, como Educação (incluindo o Fundeb) e Saúde, somam 17,1% das despesas do governo. Sobram 6,6%, que são as chamadas “despesas discricionárias”.

E o que são essas despesas discricionárias? Despesas discricionárias são aquelas livremente definidas pelo governo e pelo Congresso, o que inclui todos os investimentos estatais. Como as obrigatórias são definidas por lei, não há o que fazer. E como existe a Lei do Teto de Gastos, acaba sobrando para as despesas discricionárias. Ou seja, as despesas obrigatórias crescem segundo a lei, empurrando as despesas discricionárias contra o teto de gastos. Parece aquela cena do filme Kingsman, em que o mocinho fica preso em uma sala com a água subindo, sobrando cada vez menos espaço para respirar.

O gráfico abaixo, elaborado pelo IFI, mostra os gastos discricionários ano a ano, em proporção do PIB.

Podemos observar que, neste ano de 2021, esses gastos representam apenas 1,3% do PIB, contra uma média quase sempre em torno de 2% do PIB nos anos anteriores.

Quando a Lei do Teto de Gastos foi aprovada, sabíamos que isso iria acontecer. A ideia era aprovar reformas estruturais que diminuíssem as despesas obrigatórias. Fizemos a Reforma da Previdência, que economizaria R$ 800 bilhões em 10 anos, ou R$ 80 bilhões/ano, o equivalente a pouco mais de 1% do PIB ao ano. Foi uma reforma potente, mas os seus efeitos só se farão sentir ao longo dos anos, o efeito no curto prazo é pequeno.

O mesmo se pode dizer da Reforma Administrativa que está no Congresso. Vai valer somente para os funcionários públicos que ainda vão entrar no serviço público. Então, seus efeitos sobre o orçamento serão sentidos somente ao longo dos anos, não hoje e nem no ano que vem.

Assim, com o Teto de Gastos valendo e as despesas obrigatórias aumentando, começamos a ver a máquina rangendo. Falta dinheiro para o Censo. Falta dinheiro para o Minha Casa Minha Vida. Falta dinheiro para a segurança e a limpeza das universidades federais (não se preocupe, a verba para pagar salários de professores é obrigatória, não discricionária). Daqui a pouco vai faltar dinheiro para imprimir passaportes.

Estamos chegando à hora da verdade do Teto de Gastos. É a única regra fiscal que temos, depois que abandonamos, a partir de 2014, a política de superávits primários. Aliás, para quem acha que o Teto de Gastos é muita austeridade, gostaria que me explicasse que austeridade é essa que provocou o aumento da dívida pública em quase 40 pontos percentuais do PIB em 6 anos.

Abandonar o Teto de Gastos e não colocar nada no lugar é a receita certa para o desastre. Não temos a licença para gastar que um Tesouro dos EUA tem. Sem uma âncora fiscal que substitua o Teto de Gastos, os financiadores da dívida vão começar a exigir mais juros para financiá-la (já começaram, aliás). Uma coisa é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 50% do PIB. Outra, bem diferente, é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 90% do PIB. Começa a ficar insustentável.

Como sair dessa sinuca de bico? Esta é a questão que os candidatos a presidente a partir de 2023 precisam responder. Qualquer outra bandeira depende de se resolver isso. Porque, senão, não haverá dinheiro para financiar qualquer promessa.

Ninguém mexe no meu queijo!

O economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper, genuinamente preocupado com o destino dos pobres do Brasil, escreve artigo sugerindo oito potenciais fontes de receitas para financiar a extensão do auxílio emergencial:

  1. Corte nas emendas parlamentares
  2. Corte temporário de gastos no judiciário e legislativo
  3. Participação de estados e municípios no financiamento do auxílio
  4. Prorrogação do congelamento do salário do funcionalismo público
  5. Corte de isenções fiscais do Imposto de Renda da Pessoa Física
  6. Revogação da desoneração da folha de pagamentos
  7. Revogação de benefícios fiscais a setores específicos
  8. Extinção ou privatização de estatais menos relevantes

Obviamente, grande parte dessas medidas tem zero chance de passar no Congresso, ou mesmo de ser proposta pelo Executivo. E, mesmo que conseguisse passar por esses dois obstáculos, seriam derrubadas pelo Judiciário.

Entendo este artigo do Marcos Mendes como uma provocação. Todo mundo se apieda da situação daqueles que não têm onde caírem mortos, e acha muito justo que o Estado pague um auxílio. Não conheço hoje, no Brasil, quem seja contra a esta ideia. Mas desde que a conta seja do outro.

Vamos pegar o item que acho o menos controverso desta lista: as emendas parlamentares. Menos controverso no sentido de que, se fizermos uma enquete, a grande maioria dos brasileiros vai concordar que se trata de um item que deve ser cortado mesmo. Mas, os parlamentares dirão que se trata de verbas para obras importantes em comunidades muito pobres. Vamos deixar essas comunidades sem esses benefícios?

E assim, vamos avançar nesta lista, e todos esses gastos têm objetivos muito nobres. Todos eles. Preservação de empregos, desenvolvimento econômico, justiça tributária etc etc etc. Todo mundo sempre tem um bom e justo motivo para defender a sua teta no Estado.

É nesse sentido que o artigo é provocativo: todo mundo quer resolver o problema dos pobres, desde que não se mexa no meu queijo. Qual a solução? Aumentar a dívida pública.

O aumento da dívida pública joga o problema para o futuro. No futuro, alguém vai pagar essa conta. Talvez não seja nem essa geração. E adivinha quem vai pagar a conta?

Se, hoje, ninguém quer abrir mão de um milímetro que seja de seus benefícios, porque abririam mão no futuro? Não vão abrir igualmente. Essa conta será dividida entre todos os brasileiros, afundados em estagnação econômica e inflação. Todos os brasileiros pagarão a conta, os mais ricos e os mais pobres, aqueles que têm como pagar e aqueles que não têm. E, óbvio, quem não tem como pagar a conta sofrerá mais.

Ou o auxílio emergencial é pago com outras fontes do orçamento, ou será pago pelos mais pobres no futuro.

O papel das conjunções adversativas

As conjunções adversativas “mas” e “todavia” ligam duas ideias opostas na mesma frase. Mas não são duas ideias equivalentes. Quem tem um pouco de treino em interpretação de texto, sabe que a segunda frase prepondera sobre a primeira. Ou seja, é depois do “mas” que vem a prioridade do orador, a ideia à qual ele dá mais importância.

Em entrevista ao Estadão hoje, o candidato à presidência do Senado, Rodrigo Pacheco, expõe as suas ideias prioritárias justamente usando as conjunções “mas” e “todavia”.

Apesar do discurso aparentemente equilibrado, na prática ficamos sabendo que Rodrigo Pacheco é contra:

  • o teto de gastos
  • as privatizações
  • a Lava-Jato

Sim, eu sei que ele disse ser a favor, em princípio, dessas ideias. Mas, para ser a favor mesmo, esses conceitos precisariam ter vindo depois do “mas”. Seriam, então, entendidas como cláusulas inegociáveis.

Rodrigo Pacheco está sendo apoiado pelo PT e por Bolsonaro. O PT está apenas sendo coerente com a sua pauta anti-teto dos gastos, anti-privatizações e anti-Lava-Jato. Já Bolsonaro está sendo coerente com sua pauta anti-impeachment. Tudo faz sentido.

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.

Pulando a cerca do teto

FHC recomenda pular a cerca, mas explicando direitinho os motivos para a esposa, de modo que ela não fique zangada.

FHC sabe do que está falando. Em 1998, por motivos eleitorais, segurou quanto pode um regime cambial fixo que não tinha futuro. Em 1999, recém-eleito, foi obrigado a abandonar o regime cambial fixo que jurava que estava ali para sempre. O resultado foi uma queda irreversível da sua popularidade, que custou a eleição do seu sucessor.

Bolsonaro pode brincar de furar o teto. Afinal, não vamos deixar o povo passar fome. Como se não houvesse R$ 30 bilhões de gastos passíveis de serem cortados em um orçamento de R$1,5 trilhão.

Como eu ia dizendo, Bolsonaro pode brincar de furar o teto. Será o bolsa família mais cara da história e lhe custará a reeleição. FHC sabe disso e talvez esteja maquiavelicamente empurrando para esse resultado.

O manifesto dos profissionais que trabalham com economia

“Profissionais que trabalham com economia” publicaram um manifesto pelo fim do teto de gastos. Ainda bem que não são “economistas”! Aliás, já disse aqui que economia é a ciência que procura descrever sistemas em que os recursos são escassos. Em um mundo onde os recursos são infinitos, pois criados sem limites pelo Estado, os economistas são profissionais dispensáveis. Restam os “profissionais que trabalham com economia”, que são basicamente aqueles que contam histórias para justificar o fracasso de suas teorias.

Tive a paciência de ler o manifesto, apesar de já saber o que iria encontrar. Além da desonestidade intelectual de sempre, há um desconhecimento brutal de como funciona a realidade do mundo real.

A desonestidade vem de narrativas como a de que a retomada pífia do crescimento econômico a partir de 2017 se deveu à aprovação do teto de gastos no ano anterior. Ora, o teto de gastos não será um limitador de gastos até 2021 ou 2022! Ou seja, o governo continuou gastando normalmente (entre gastos discricionários e não discricionários) como se o teto não existisse, com exceção desse ano de 2020, quando foram aprovados gastos discricionários para combater os efeitos da pandemia. Ou seja, não houve limitador algum! O crescimento foi pífio por outros motivos, não pelo teto. Há outras desonestidades no “manifesto”, mas vamos ao cerne da questão.

Os “profissionais que trabalham com economia” apontam corretamente o problema básico que o teto de gastos veio endereçar: a trajetória explosiva da dívida pública. Achei isso digno de nota, porque normalmente nesses “manifestos” esse problema não é abordado. Gasta-se muita tinta falando-se de “direitos” e “incentivos ao crescimento”, como se essas necessidades, por si só, tivessem o condão de criar dinheiro do nada.

Mas, ao citar o problema, os “profissionais que trabalham com economia” tiveram que propor uma solução. E a solução foi… negar a existência do problema!

Segundo os manifestantes, os países desenvolvidos estão agora mesmo empilhando incentivos fiscais sem se preocuparem com a dívida. Cita Espanha e Itália, que sequer podem imprimir a própria moeda, fazendo a mesma coisa. E nós, que imprimimos o poderoso Real, porque não podemos fazer o mesmo???

Sinto-me até constrangido em explicar coisa tão básica. Sou engenheiro e, portanto, não sou sequer um “profissional que trabalha com economia”, quanto mais um economista. Mas não precisa ser um especialista da área para distinguir países desenvolvidos de países subdesenvolvidos.

Uma pequena digressão. Para financiar a guerra da independência, a União norte-americana emitiu títulos de dívida, comprados pela elite econômica das colônias. Obviamente, depois da guerra, a União não tinha como pagar aquela dívida, e então os seus detentores venderam seus títulos a preço de banana para especuladores, que tinham alguma esperança de receber algum dinheiro por aquilo. Deu-se então um embate dentro do governo: de um lado, Jefferson defendia o calote, pois esses especuladores não tinham o direito de receber 100% da dívida, na medida em que aufeririam um lucro injusto. Do outro lado estava Hamilton, o pai do sistema financeiro norte-americano, que defendia que dívida é dívida, e precisa ser paga para, assim, se manter a credibilidade do devedor. Hamilton venceu a batalha, e os títulos foram pagos a valor de face.

Conto essa história para mostrar que os EUA têm mais de 200 anos de credibilidade acumulada. É considerado um país sério, que cumpre seus compromissos. Todos confiam no papel pintado que o governo afirma ter valor, o dólar. Mesmo com tudo isso, há uma crescente desconfiança no mercado sobre a sustentabilidade da dívida americana.

Vamos ao caso de Espanha e Itália. Ambas emitem dívida em euros. O país que está verdadeiramente por trás do euro é a Alemanha, outro país absolutamente confiável. Há não muito tempo, a Grécia (que também emite dívida em euros) preferiu fazer um ajuste fiscal draconiano a abandonar o euro. Por que fizeram isso? Porque sabem que com o dracma sua população iria empobrecer ainda mais, pois a moeda seria rapidamente comida pela inflação. Espanha e Itália também sabem disso e, portanto, mantém suas contas fiscais mais ou menos em ordem. A grande dívida que têm só é possível PORQUE emitem em euro, não APESAR DE emitirem em euro, como afirmado no manifesto.

E o Brasil? Bem, nosotros somos um pobre rapaz latino-americano sem dinheiro no banco. Temos histórico de calote de dívida em várias dimensões: calote mesmo (em 1987 decretamos moratória da dívida externa), confisco (Collor em 1990) e hiperinflação da década de 80, que é a forma mais perversa de dar calote na dívida. Estamos vivendo um período inédito, em que nossa moeda não perde muito valor com o tempo, mas trata-se de uma exceção em nossa história, não uma regra. Essa conquista só foi possível porque mantivemos algum grau de disciplina fiscal nos últimos 25 anos. A mesma disciplina vilanizada pelos “profissionais que trabalham com economia”.

Este “profissionais” sugerem que, pelo fato de os financiadores da dívida serem , em sua grande maioria, brasileiros, não haveria problema de financiamento, pois não haveria para onde fugirem. Chegam ao extremo de sugerir que, se houvesse uma “fuga de capitais” para o exterior, o Banco Central teria instrumentos para lidar com o problema. Claro, fechando as fronteiras para o livre fluxo de capitais, o que nos tornaria no momento imediatamente posterior, um pária internacional sem acesso à poupança externa. Como geramos déficit em conta corrente, não teríamos com quem nos financiar, gerando uma desvalorização brutal da moeda e inflação. Já vimos esse filme muitas vezes.

O que esses “profissionais que trabalham com economia” estão sugerindo é uma volta a um passado de irresponsabilidade. Queremos caminhar para frente, não para trás. Corremos sério risco de jogar 25 anos de estabilidade monetária pela janela. Espero sinceramente que os verdadeiros economistas, aqueles que trabalham com escassez de recursos, façam ouvir a sua voz.