Perdendo a hegemonia cultural

O colunista Pedro Doria traz as conclusões de estudos que demonstrariam que conteúdos “de direita” viralizam mais do que os “de esquerda”. E mais: que pessoas “de direita” receberiam somente conteúdo “de direita” em suas timelines, enquanto pessoas “de esquerda” estariam expostas a conteúdos mais “diversificados”. Uau!

Não tive acesso a esses estudos, mas vou comprá-los a valor de face. Digamos que seja assim mesmo, ou seja, os algoritmos criam bolhas “de direita”, “radicalizando” (essa é a expressão usada pelo colunista) uma parcela da população. Como se pessoas “de esquerda” o fossem porque pensam por si próprias, e pessoas “de direita” fossem lobotomizadas para pensar do jeito que pensam.

Durante muitos anos, os poucos pensadores de direita apontaram a bolha de esquerda que as universidades representavam. Quem cursou humanas ou quem dá aulas em cursos de humanas nas universidades sabe do que estou falando. Ali, diversidade de pensamento é que nem mula sem cabeça, uma figura do folclore. Há um pensamento dominante, e ai de quem mija contra o vento. Gerações e gerações de brasileiros foram e são formados nessas bolhas.

Apesar de ser pública e notória, essa dominância sempre foi tratada pela esquerda como uma espécie de paranoia da direita. A universidade seria plural, todas as ideias seriam bem-vindas, e qualquer acusação em contrário era devida à mania de ver comunistas debaixo da cama.

Bem, agora é a hora da vingança da “direita”: essa acusação de que os algoritmos são “de direita” não passa de paranoia. As redes sociais são um lugar plural, onde todas as ideias têm livre circulação. Qualquer acusação em contrário é devida à mania de ver nazistas debaixo da cama.

É duro perder a hegemonia cultural.

Queremos imitar Xi Jiping?

Thomas Friedman, colunista do NYT, está preocupado com a China. Xi Jiping estaria indo longe demais em sua intervenção contra os capitalistas de empresas de tecnologia. Por exemplo: Jack Ma, o fundador do Alibaba, o maior site de e-commerce do mundo, estaria desaparecido. Realmente, uma coisa muito extrema.

Mas o que me chama a atenção é a justificativa para as ações do premiê chinês: Xi Jiping não quer para o seu país “a exacerbação de tensões sociais, o aumento da desigualdade e o estabelecimento de monopólios que dominem governos”, tudo isso fruto da ação das empresas de tecnologia. Em seu momento Eugênio Bucci, Friedman concorda que Xi Jiping está fazendo, em geral, a coisa certa. Só exagerou um pouco ao fazer Jack Ma “desaparecer”. Uau!

Xi Jiping está intervindo nas empresas de tecnologia porque é chefe de um estado autoritário e vê nessas empresas uma ameaça ao seu poder. Pelo visto, Friedman concorda com Lula, que afirmou, em uma antológica entrevista a um jornal chinês, que a China só chegou onde chegou porque tem um Estado forte. E põe forte nisso! Jack Ma que o diga.

Friedman e todos os seus colegas estão preocupados com a ameaça que os monopólios de tecnologia representam para a democracia. A intervenção de um governo autoritário para “resolver o problema” deveria ser suficiente para mostrar o quão delicado é este assunto de intervir na livre iniciativa e na liberdade de expressão. Não por outro motivo, os governos ocidentais estão patinando no controle dos tais “monopólios de tecnologia”. Afinal, fazer Zuckerberg “desaparecer” não é tão fácil, mas talvez seja a única solução, como demonstrado por Xi Jiping.

Todos sonham com um mundo bom, belo, justo e democrático, onde não haja “tensões sociais, desigualdade e pressão nos governos por parte de monopólios de tecnologia”. Xi Jiping resolveu esse problema. Queremos imitá-lo?

Redes sociais, a nova face do velho capitalismo

O professor Eugênio Bucci lançou um livro. Em entrevista ao Estadão (destaquei os trechos mais interessantes abaixo), nos conta um pouco do que vai por aquelas páginas. Ao lado de expressões como “a instância da imagem ao vivo é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço”, repetida pelo entrevistador com mal disfarçado enlevo, Bucci somente repete o seu fatwa sobre as redes sociais, o que já havia sido objeto de artigos do professor.

Segundo o professor da ECA, “nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”. Os seres humanos escravizados de todas as épocas, o que inclui os prisioneiros dos campos de concentração nazistas e das prisões do Gulag soviético, devem estar se revirando nos seus respectivos túmulos. Até mesmo os proletários de Marx, esses pobres explorados pelo capital, devem estar aliviados de não serem mais os líderes desse ranking da exploração. Agora, os mais explorados de todos os tempos somos nós, os usuários das redes sociais. U-lá-lá!

Bucci faz uma revelação aterradora: os usuários das redes sociais somos “mercadejados”! A palavra “mercadejar” traz uma carga negativa para esse tipo de intelectual, que vê no comércio algo sujo, impróprio da dignidade humana. Para esse pessoal, um outro mundo, com as pessoas trabalhando quanto puderem e consumindo quanto quiserem, é possível. Não à toa, o professor se refere à “ganância do capital” como a fonte de todos os nossos problemas. De fato, essa ganância que permitiu tirar bilhões de seres humanos da miséria e dobrar a expectativa de vida da humanidade ao longo dos últimos séculos é um problema a ser resolvido.

Mas voltemos à “revelação”: somos mercadorias! Uau! E eu achando que o Zucka nos fornecia essa plataforma de graça por ser um grande filantropo, interessado apenas em nos proporcionar alguma diversão. Estou perplecto.

O professor nos conta que há uma grande assimetria: enquanto os algoritmos nos conhecem profundamente, nós não conhecemos nada sobre os algoritmos. Fico pensando o que ganharíamos em conhecer os detalhes técnicos dos algoritmos. Deixaríamos de clicar onde clicamos? Deixaríamos de visitar as páginas que visitamos? Deixaríamos de usar as redes sociais? Na verdade, parece-me que hoje não há ninguém suficientemente ingênuo que não saiba que toda a sua navegação na Internet esteja sendo monitorada para nos vender coisas. O que mais exatamente precisamos saber?

Aliás, essa “assimetria” informacional não é privilégio das redes sociais. Toda empresa de bens de consumo conhece muito melhor o cliente, via pesquisas e imensos bancos de dados (que já existiam antes das redes sociais) do que o cliente conhece a empresa. As redes sociais e o Google somente alavancaram no poder da Internet para levar esse processo de conhecimento do cliente ao estado da arte. Não houve uma mudança de natureza, houve apenas um aumento da velocidade e da quantidade de dados disponíveis.

Bucci sugere como remédios “regulamentação democrática” e “quebra de monopólio”. Fico imaginando que tipo de regulamentação poderia impedir o uso de dados que os usuários topam compartilhar como preço pelo uso da ferramenta. E, caso haja proibição total de uso desses dados, fico imaginando como as redes sociais e os buscadores da Internet sobreviveriam. Na verdade, a própria Internet como a conhecemos ficaria inviabilizada. Voltaríamos a um mundo sem Internet. Conseguem imaginar?

Por fim, não poderia faltar o toque político: a democracia estaria ameaçada! Por quem? Nada mais, nada menos, que os bolsonaristas, que usam as redes sociais para espalhar o ódio e fake news. Como se outras forças políticas não pudessem usar as redes sociais por algum motivo. E como se as redes sociais fossem um fator determinante para abalar regimes democráticos. Não me consta que Hitler ou Stálin contassem com redes sociais.

Enfim, toda a análise do professor Eugênio Bucci está irremediavelmente contaminada pela sua visão anti-capitalista. As redes sociais são somente a mais conveniente e atual desculpa para apontar os males da sociedade consumista em que nos transformamos. O sonho dos Bucci da vida é o outro mundo possível, em que nos livremos da ganância do capital. Não deixa de ser irônico que os cubanos, que experimentaram esse outro mundo possível, estejam agora mesmo pedindo acesso livre às redes sociais.

Redes Sociais e a busca pelo censor ideal

O canal do jornalista Allan dos Santos no YouTube, chamado Terça Livre, foi retirado do ar pelo próprio YouTube. Segundo a rede social, o canal havia violado os seus termos de serviço uma vez, e foi suspenso por uma semana. Allan dos Santos criou então um outro canal alternativo para continuar postando os vídeos do Terça Livre. O YouTube entendeu que o canal alternativo procurava burlar as suas regras, o que levou ao encerramento definitivo de todos os canais de Allan dos Santos na rede social.

Ao que parece, a primeira advertência se deu pela postagem de vídeos denunciando supostas fraudes nas eleições norte-americanas. Estas postagens foram consideradas “notícias falsas” pelo YouTube, o que levou à primeira advertência. A questão fundamental, portanto, não é o encerramento em si das contas de Allan dos Santos. Este encerramento ocorreu porque, efetivamente, o jornalista tentou burlar as regras ao criar um canal alternativo. O problema fundamental é a natureza da primeira advertência. Teria a rede social legitimidade para vetar conteúdos? Este veto não se configuraria em uma agressão à liberdade de expressão?

Uma pequena digressão inicial: a liberdade de expressão como uma boa desculpa

Antes de enfrentar este tema, gostaria de chamar a atenção para duas reações ao acontecido. O primeiro, do próprio Allan dos Santos, e o segundo, do Partido da Causa Operária (PCO).

Chamo a atenção para o ponto em comum às duas manifestações: nos dois casos, o agente responsável pela censura seria um grande ente manipulador global: os “globalistas” no dizer de Allan dos Santos, os “monopólios imperialistas”, no caso do PCO. Tenho uma regra mestra que guia as minhas decisões sobre no que acreditar ou não acreditar: se tem cheiro de teoria da conspiração, normalmente descarto. É o caso dessas duas notas. Os dois extremos se encontram não na defesa da liberdade de expressão, mas no exorcismo de fantasmas. A defesa da liberdade de expressão parece ficar em segundo plano. A verdadeira luta se dá contra “forças ocultas e poderosas”, e a defesa da liberdade de expressão serve apenas como uma desculpa conveniente. O amor do PCO à liberdade de expressão não orna com a férrea censura implementada para “defender la revolución” em países onde partidos guiados pela sua mesma ideologia dão as cartas. E tampouco o apreço de Allan dos Santos pela liberdade de expressão combina com a diuturna demonização da grande imprensa levada a cabo pelo governo a que apoia. O governo Bolsonaro diminuiu as verbas publicitárias para a TV Globo e aumentou as da TV Record, não respeitando critérios técnicos de audiência. É o seu modo de censurar os “inimigos da revolução”.

Em resumo: liberdade de expressão é um termo tão elástico quanto, por exemplo, democracia. Segue o jogo.

A legitimidade das redes sociais como árbitros do jogo político

Mas, neste artigo, o foco não será a liberdade de expressão. Vamos, outrossim, tentar responder à seguinte questão: tem o YouTube legitimidade para derrubar canais hospedados em sua plataforma? Terá o YouTube exorbitado de seu poder ao derrubar os canais de Allan dos Santos? Este texto será como que uma continuação do post Redes Sociais e Poder Político, publicado neste mesmo blog. E como ele, terá mais perguntas do que respostas.

O principal argumento em favor do direito de o YouTube derrubar qualquer canal é o seguinte: assim como o Facebook e o Twitter no caso do cancelamento dos perfis de Donald Trump, o YouTube é um empreendimento privado. Caberia ao seu dono, portanto, criar as regras do seu mundo. Na nota em que explica o banimento do canal Terça Livre, o YouTube diz textualmente o seguinte: “o YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios”. É isso. Minha empresa, minhas regras.

No entanto, parece claro que “minha empresa, minhas regras” não é uma expressão absoluta, válida em todos os casos. Uma empresa não pode, por exemplo, poluir um rio ou escravizar pessoas por um simples ato de seu poder. O fato de uma empresa ter sido constituída com capitais privados não lhe dá permissão para fazer tudo de acordo com seus próprios critérios. Há limites, dados pelo direito dos outros. Cabe, então, analisar se o YouTube, ao derrubar o canal Terça Livre, feriu o direito de um terceiro.

O YouTube está fornecendo uma mercadoria: uma infraestrutura para manter vídeos na internet. Como qualquer empresa, o YouTube pode escolher a quem fornecer a sua mercadoria, de acordo com seu exclusivo critério. Ninguém tem o direito de exigir de uma empresa que lhe venda alguma coisa, a não ser que se trate de um bem essencial vendido por um monopolista (água encanada, por exemplo). Não é o caso do YouTube. Não se trata de um bem essencial, e nem tampouco a empresa é monopolista, há outros fornecedores. Portanto, ao se recusar a vender o seu produto para o Terça Livre, o YouTube não feriu o direito de ninguém. Além disso, sempre se poderá dizer que, se o YouTube não existisse, este serviço também não existiria, e o cliente ficaria sem o serviço de qualquer forma. Ou seja, não existe uma espécie de “direito divino” a um canal no YouTube. Este direito só existe porque a empresa existe, trata-se de um direito “criado” pela empresa, que, portanto, também teria o poder de subtrair este direito de um determinado cliente.

Há dois contra-argumentos a esse raciocínio.

O primeiro está no critério usado pela empresa para se recusar a fornecer a sua mercadoria. Por exemplo: um supermercado não pode barrar a entrada de uma pessoa negra em suas dependências, alegando ter uma regra própria que impede negros de frequentarem o estabelecimento. É óbvio que o supermercado não é monopolista, e o cliente barrado pode procurar outro. Mas isso não isenta a empresa de ser acusada de crime de discriminação racial. O critério para não vender para o cliente precisa também ser ético. Por isso, o YouTube dizer que “se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios” não está correto. É preciso entender quais são esses critérios. E note que não entramos na areia movediça da discussão sobre liberdade de expressão. Estamos apenas analisando a discricionariedade de uma empresa em relação ao fornecimento de mercadorias a seus clientes. No momento em que uma empresa se estabelece, são precisos motivos fortes para deixar de fornecer seus serviços para determinados clientes.

O YouTube, de fato, estabelece claramente os seus critérios, que estão devidamente descritos nos seus termos de serviços. A empresa existe há 16 anos. Se algum desses critérios estivesse em desacordo com a lei, como por exemplo a discriminação racial, já teria sido denunciada faz tempo. Portanto, em princípio, nada do que o YouTube faz transgride o ordenamento legal vigente, o que faz com que este primeiro contra-argumento não se aplique ao caso em tela.

O segundo contra-argumento é mais sutil e aplica-se especialmente a este caso. Trata-se do jogo político, entendido como a busca pelo poder político por parte de grupos organizados. Calar a voz de um ator político significa dar mais força ao grupo político opositor. No jogo democrático, todos os atores políticos deveriam ter à disposição as mesmas armas. Claro, isso é uma utopia, pois sabemos que recursos financeiros distorcem este jogo. As redes sociais se constituíram em um advento que justamente equilibrou o jogo democrático, ao dar voz a atores que, de outra maneira, seriam ignorados por não terem recursos financeiros. Assim, ao calar a voz de um dos principais apoiadores do governo, o YouTube voltaria a desequilibrar o jogo democrático em favor de seus adversários. Aliás, este mesmo contra-argumento serve para condenar o fechamento das contas de Donald Trump no Facebook e no Twitter. Em outras palavras, uma vez que o YouTube existe, o direito de usar o seu espaço deveria ser equilibrado entre todas as forças políticas. Este direito, “criado” pela existência da empresa, não poderia ser retirado por ela.

Aqui já entramos em terreno mais pedregoso. Angela Merkel, a respeito de quem não paira nenhuma dúvida sobre suas convicções democráticas, condenou o fechamento das contas de Donald Trump. Seu argumento: empresas privadas não podem tomar decisões que envolvam o jogo político. Trata-se de uma esfera pública, que deveria ser tratada pelos representantes do povo devidamente eleitos. É um ponto.

Juntamos aqui o primeiro e o segundo contra-argumentos: dentre os critérios que seriam considerados inválidos para barrar determinados clientes, poderiam estar aqueles que desequilibram o jogo político? Mais do que isso: as redes sociais teriam legitimidade para arbitrar sobre o jogo político?

O YouTube, de fato, tem critérios sobre o que pode e o que não pode ser feito em seus canais quando se trata de política. Estes critérios podem ser lidos aqui, e incluem manipulação de vídeos, informações incorretas ou obtidas através de hackers e até “denunciar falsamente que um candidato não pode ser eleito por não apresentar os requisitos de cidadania necessários para assumir cargos públicos em um determinado país”. Só faltou dizer que não pode afirmar que Obama não é norte-americano…

Em princípio, esses critérios do YouTube (e imagino que sejam basicamente os mesmos no Facebook e no Twitter) foram concebidos para tornar mais justa a luta política. Merkel, como vimos, não vê legitimidade das redes sociais para adotarem critérios deste tipo. Ou, no mínimo, para aplicarem esses critérios aos casos concretos. Porque os critérios são sempre bons e justos, o diabo está no detalhe da aplicação ao caso concreto.

Vamos dar uma parada no raciocínio por um instante, e desviar para o caso concreto. Depois voltamos. O canal Terça Livre recebeu uma advertência por propagar vídeos mostrando supostas fraudes no processo eleitoral norte-americano. A questão é saber se as fraudes são verdadeiras ou se são, elas mesmas, fraudes feitas para distorcer os resultados de um processo eleitoral legítimo. Quem tem o poder de distinguir a verdade? Neste caso concreto, entendo que seja o próprio árbitro do processo eleitoral, que são as juntas eleitorais e os juízes aos quais se apelou contra os resultados apurados. Até onde eu saiba, não houve reversão substantiva de resultados nessas instâncias. Ou seja, as instituições da mais longeva e sólida democracia ocidental referendaram o resultado eleitoral. Acusar de fraude é, em si, uma fraude. O árbitro por direito do processo já declarou que não houve fraude a ponto de mudar o resultado. Já deveria ser o suficiente. Resta inútil procurar rebater nas redes sociais todas as acusações de fraude, por um motivo simples: não há argumento que vença uma teoria da conspiração. Sempre prevalecerá a convicção de que o resultado não poderia ser aquele, a não ser por interferência de um “grande ente manipulador global”. Contra esta convicção, não há o que fazer.

Esta breve digressão ao caso particular nos será útil para voltar com novos elementos à nossa discussão anterior: teriam as redes sociais legitimidade para interferir no jogo político, mesmo com critérios bons, justos e belos? Em princípio, ao coibir a propagação de falsidades (e estamos assumindo aqui que, como desenvolvemos no parágrafo acima, a acusação de fraude nas eleições norte-americanas é, em si, uma fraude), o YouTube estaria protegendo o processo político. Como se lê em seus termos, “temos a responsabilidade de […] promover um discurso político íntegro”. Novamente: é papel do YouTube fazer isso, ou deveríamos ter uma instância política dedicada a isso?

Peço que leiam a pequena nota a seguir. É de abril de 2019:

Mark Zuckerberg, que de bobo não tem nada, pediu, em um artigo no Washington Post, regras claras sobre o que pode e o que não pode ser publicado nas redes. Obviamente, não veio nada por parte dos governos. O poder político simplesmente não sabe como lidar com este assunto. Então, as redes sociais resolveram fazer justiça com as próprias mãos, seguindo seus exclusivos critérios. Por quê? Alguns vão dizer que há um viés ideológico por parte de seus executivos. Outros vão afirmar que houve uma resposta a uma pressão da opinião pública. Na prática, é irrelevante o porquê. O fato é que as redes sociais têm o poder de fazer o que fizeram, a lei não os impede de fazer o que fizeram, e decidiram então fazê-lo. A motivação é irrelevante.

Irão os governos legislar sobre o que pode e o que não pode aparecer nas redes sociais? Ou sobre o poder que têm as redes sociais de decidir o que pode ou o que não pode aparecer? Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

O problema do censor ideal

Sempre se dirá que há conteúdos inequivocamente prejudiciais, sobre os quais não há dúvida de que não deveriam estar no ar. O fato é que, se 100% das pessoas concordassem que um determinado conteúdo não deveria estar no ar, ele não estaria no ar, por definição. Como todos os conteúdos que estão no ar contam com uma parcela de pessoas que os apoiam, seria preciso uma instância definidora do que pode e do que não pode estar no ar. E esta instância, desculpe-me o nome feio, chama-se censor.

E aqui cabe novamente distinguir entre as regras e a aplicação das regras. Hoje, tanto as regras quanto a sua aplicação aos casos práticos estão nas mãos das redes sociais. Zuckerberg, ao que parece, está pedindo regras gerais. Fica a dúvida se isso também inclui a criação de alguma instância estatal responsável pela sua aplicação. Seria, aí sim, um órgão censor estatal.

Chegamos, finalmente, à questão da liberdade de expressão. A censura (este é o nome) a determinados conteúdos fere a liberdade de expressão, um direito fundamental do ser humano? Como escrevi no meu post anterior, entendo que a liberdade de expressão não é um bem absoluto, sendo limitada pelo prejuízo que possa causar a terceiros. Todos concordamos que uma pessoa aplicando um golpe na internet está exercendo a sua liberdade de expressão de maneira criminosa. O problema está em aplicar, de maneira universalmente aceita, o conceito abstrato de crime aos casos concretos. As fraudes eleitorais aconteceram de fato ou são, em si, uma fraude? Quem decide isso? A regra em si é sempre boa. O problema é sempre sua aplicação ao caso concreto.

O censor ideal seria aquele que aplica as regras boas de maneira inequivocamente adequada. Existe? Obviamente não, assim como não existe o juiz ideal. Mas não é pelo fato de não termos um juiz ideal que não devemos ter juízes de maneira alguma. Há casos concretos em que a liberdade de expressão deve ser limitada. Falta um censor com legitimidade que aplique este princípio ao caso concreto no jogo político. Fica a pergunta: as redes sociais podem fazer este papel enquanto não existir uma instância legítima?

Resumindo

Concluo com um resumo do que vimos até aqui.

As redes sociais são empreendimentos privados. No entanto, mesmo empreendimentos privados não podem negar os seus produtos e serviços a qualquer um, a não ser baseados em critérios justos. A mera existência da empresa, que permite a oferta do produto, não é motivo suficiente para negar a oferta do produto de maneira absolutamente discricionária.

Este ponto é especialmente importante quando se trata da arena política: todos os contendores deveriam poder contar com o mesmo espaço nas redes sociais, para o bem do equilíbrio do jogo político. Critérios objetivos e sua aplicação aos casos concretos deveriam, em tese, ser de responsabilidade do poder público. As redes sociais estão somente ocupando um vácuo deixado pelo poder público, de acordo com seus próprios critérios. Não que os critérios do poder público sejam necessariamente melhores, é só uma questão de legitimidade.

Por outro lado, a figura de um censor público não rima com liberdades democráticas. Equação difícil de resolver.

Redes Sociais e poder político

Peço perdão aos leitores, mas este artigo acabou ficando muito longo. Trata-se de um assunto (ou vários assuntos, na verdade) muito delicado e controverso, e que, penso, não dá para tratar com palavras de ordem e raciocínios prontos. Esse artigo, na verdade, foi escrito enquanto eu mesmo pensava sobre o assunto, procurando fazer um todo que fizesse sentido para mim mesmo. Meu objetivo é fazer pensar, mais do que defender pontos de vista. Você pode não concordar com as premissas ou com as conclusões. Mas espero que, pelo menos, tenha paciência em me acompanhar nessa jornada.

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Confesso que tenho “mixed feelings” com relação à decisão de bloqueio da conta pessoal do (ainda) presidente dos EUA, Donald Trump, pelas redes sociais Facebook e Twitter (a que depois se juntaram Apple, Google e Amazon, ao banir o Parler, uma rede social usada alternativamente por Trump).

“Mixed feelings” porque são muitas e diversificadas as dimensões e implicações dessa decisão. Envolve liberdade de expressão, proteção às instituições democráticas e poder dos gigantes de tecnologia. Até a ordem em que esses assuntos são abordados denuncia o viés de quem está fazendo a análise. Se eu começar a falar que a liberdade de expressão é importante, mas só até o ponto em que não coloca em risco as instituições, é óbvio que estou relativizando a liberdade de expressão. Por outro lado, se digo que é muito importante preservar as instituições, desde que a liberdade de expressão seja preservada, as instituições é que foram relativizadas.

Para tentar fugir dessa armadilha, vou procurar extrair uma regra geral observando o que acontece em qualquer lugar do mundo a qualquer tempo, sem juízo de valor (por enquanto).

Regimes políticos

Antes de começar, vamos procurar definir o que é um regime político. Regime político é o arranjo de instituições que permite o exercício do poder. Em qualquer sociedade civilizada, em que não prevalece a lei do mais forte de indivíduos sobre outros indivíduos, há um certo arranjo que permite tomar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. Isso vale para regimes totalitários, autoritários ou democráticos: a sociedade se organiza de tal forma a legitimar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. É o que chamamos de “regras do jogo”.

Há dois tipos de oposição possíveis de serem feitas contra quem detém o poder: dentro das regras do jogo e fora das regras do jogo. Há regimes políticos em que a oposição dentro das regras do jogo é interditada. Portanto, somente resta a oposição fora das regras. Na verdade, há somente um regime que permite a oposição aberta dentro das regras do jogo: o regime democrático. Mas este ponto não nos interessa, por enquanto. Interessa-nos o caso de oposição fora das regras do jogo. Neste caso, todos os regimes, inclusive o democrático, se protegem. Sem exceção.

Qualquer tentativa de mudar o regime ou de desafiá-lo por fora das instituições é rechaçado por qualquer regime, de qualquer coloração a qualquer tempo. E o regime democrático não é exceção. É o que chamamos de “golpe de Estado”. Esta é a regra geral.

Claro que nada é preto no branco. Há um limite tênue, uma zona cinzenta, entre as regras do jogo e o uso que se faz dessas regras. O PT, por exemplo, insiste na tese do “golpe” por considerar que as regras foram usadas de maneira inadequada, no que seria um “golpe parlamentar”. Por outro lado, Maduro teria conquistado espaços de poder, a rigor, dentro das regras do regime: eleições e decisões judiciais. Nem o primeiro descumpriu qualquer preceito do Estado Democrático de Direito e nem o segundo é um exemplo de conformidade com as regras do jogo. No entanto, são exemplos de quão difícil é definir estes conceitos de maneira uniforme e que possam ser universalmente aceitos.

De qualquer modo, a regra geral continua valendo, mesmo que enfrentemos dificuldades em aplicá-la a casos particulares: qualquer regime usará de sua força para se auto proteger, mesmo o regime democrático. Esta é uma regra importante, pois justifica a limitação de direitos. Vamos ao caso da democracia, o regime campeão na defesa dos direitos humanos.

A limitação da liberdade de expressão no regime democrático

Não se pode usar dos direitos humanos garantidos pela democracia em atos fora das regras do jogo democrático. Em outras palavras: o regime democrático é regido por certas regras, e qualquer ato deve respeitar essas regras.

Um dos direitos humanos guardados pela democracia é a liberdade de expressão. A qualquer ser humano é lhe observado o direito de falar o que bem entender. Mas não se trata de um direito absoluto. Este direito está limitado por algumas regras. Não posso, por exemplo, caluniar ou difamar uma pessoa. Ou incitar um crime. O meu direito de expressar-me termina onde começa o direito de outra pessoa à sua imagem pública, ao seu patrimônio ou à sua própria vida.

Tendo estabelecido essas duas premissas – 1. As instituições do regime democrático irão reagir a qualquer tentativa de burlar as regras do jogo e 2. O direito à liberdade de expressão é limitada pelo direito do outro – vamos enfrentar o caso em tela. E, como dissemos acima, não é nada fácil.

O caso Donald Trump

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer se Trump ameaçou o regime democrático. Somente neste caso, como vimos, se justificaria a limitação à sua liberdade de expressão, por ameaçar as bases do regime pactuado pela sociedade americana.

Donald Trump colocou em dúvida a lisura das eleições. Mais do que isso: quando todas as instâncias às quais ele poderia recorrer negaram provimento às suas alegações, armou um comício em frente ao Capitólio, onde se daria um ato protocolar: o reconhecimento, por parte dos deputados e senadores, dos resultados das eleições nos diversos Estados. O objetivo de Trump era convencer os congressistas a não reconhecer os resultados, o que provocaria um impasse inédito no processo eleitoral americano. Vale lembrar que os resultados de alguns Estados já haviam sido objeto de contestação por parte de Trump, sem sucesso.

Apenas como registro histórico, desde que o procedimento atual foi adotado, em 1887, somente em duas ocasiões, em 1969 e 2005, os senadores e deputados, nessa seção conjunta, aceitaram discutir pedidos de revisão de votos. Eram casos muito específicos, e em nenhum dos dois casos os votos foram invalidados. Em 2001, Al Gore, então presidente do Senado (por ser o então vice-presidente) e candidato derrotado à presidência por uma mísera margem de votos na Flórida, descartou revisar esses votos nessa seção conjunta.

O que Donald Trump (nada menos que o presidente dos EUA, não convém esquecer) estava pedindo naquele comício em frente ao Capitólio, era que os deputados e senadores não reconhecessem o resultado das eleições em alguns Estados. Terá sido um ato antidemocrático, fora das regras do jogo? (Calma, já chegarei na invasão do Capitólio).

Entendo que o problema está mais no espírito do que na forma. Se existe essa sessão conjunta no Congresso, e se está previsto na Lei que essa sessão conjunta pode receber e acatar pedidos de revisão de votos, o pedido de Trump se deu conforme as regras do jogo. O problema, entendo, está no chamado “abuso de forma”.

É um pouco como se a noiva ou noivo, no altar, ao invés de dizer “sim”, dissesse “não”. Claro, formalmente falando, é possível dizer “não” ali. Mas aquele é um momento de celebração, todas as questões já foram (ou, pelo menos, deveriam ter sido) sanadas, de modo que a formalidade cerimonial é apenas isso, uma formalidade. Dizer “não” é um “abuso de forma”, ou seja, usa-se uma prerrogativa que formalmente até existe, mas não é para ser usada. É, em outras palavras, uma atitude que não faz parte do ritual do casamento, apesar de, formalmente, ser possível.

Donald Trump abusou da forma, em uma atitude que não faz parte do ritual democrático. Tanto é assim, que seu vice-presidente se recusou a participar da pantomima. Neste momento, entendo que o presidente Donald Trump não guardou a liturgia do cargo para o qual foi eleito, e atentou contra o regime democrático.

Note que não entrei na discussão sobre a invasão ao Capitólio. Este é o evento que, de fato, captou a atenção do público e deu origem a toda essa reação ao presidente. Mas, entendo que, mesmo que não houvesse ocorrido a invasão, o presidente abusou da forma, jogando fora das regras.

A invasão ao Capitólio, apesar de chocante, foi apenas a cereja do bolo de um processo. Foi útil, se é que podemos dizer assim, para materializar de alguma forma o que já era, per se, um ataque às instituições democráticas. Entrou pelos olhos, não restou dúvida do que se tratava. Resta ocioso discutir se Donald Trump incitou ou não a multidão naquele momento. A invasão foi apenas uma consequência natural de todo o processo, a metáfora que ilustra a tese.

No dia do evento, Donald Trump estava fazendo um comício em frente ao Capitólio. Se a invasão tivesse sido incitada apenas por este comício, não faria sentido que as redes sociais silenciassem o presidente. Se o fizeram, é porque entenderam que suas plataformas serviram para que ele jogasse fora das regras do jogo democrático mesmo antes do comício e, potencialmente, poderia continuar a fazê-lo depois. A questão que nos cabe agora analisar é justamente essa: sob qual justificativa as redes sociais podem silenciar uma pessoa?

As redes sociais no papel de agentes políticos

Em primeiro lugar, já vimos que a liberdade de expressão tem limites. No caso, o limite dado pela preservação do regime político. E, neste caso, tanto faz se o regime é de força ou democrático: não é permitido usar as prerrogativas dadas pelo regime para jogar fora das regras do regime.

Claro, sempre se pode tentar substituir o regime político. São muitos os exemplos que a história nos mostra. Mas há que ficar claro que nenhum regime, nem mesmo o democrático, permitirá o uso da liberdade de expressão para derrubá-lo. O regime democrático, pelo menos, tem a vantagem de proporcionar um espaço oficial para o contraditório, onde, aí sim, a liberdade de expressão é absoluta. Saindo desse cercadinho oficial, não há que se falar de liberdade de expressão.

Pois bem. Vimos que Donald Trump saiu do cercadinho democrático. Portanto, era necessário cercear a sua liberdade de expressão, para proteger o regime. O ponto complicado dessa história, no entanto, é o agente do cerceamento.

Normalmente, por estarmos nos referindo a um regime político, são os agentes políticos os responsáveis pelo cerceamento à liberdade de expressão. No caso, entretanto, um agente privado assumiu o papel de cerceamento e proteção do regime. Trata-se de um caso inédito, e que demanda uma análise mais detida.

A natureza das redes sociais

Em primeiro lugar, as redes sociais são um tipo de empresa que, apesar de lidar com informações públicas, não requerem autorização pública para funcionar. Empresas de TV e radiodifusão necessitam de uma concessão pública. Mas isto acontece por uma questão física: a limitação das ondas eletromagnéticas disponíveis para a transmissão, que precisa ser regulado pelo poder público para evitar interferências. Jornais e revistas, por exemplo, também lidam com informações públicas e, nem por isso, precisam de autorização governamental para funcionar. (Claro, estamos aqui falando do regime democrático).

Quando eu estava na faculdade, havia um jornalzinho editado pelo Centro Acadêmico. O jornalzinho era, na verdade, uma grande seção de cartas dos leitores. Todo o espaço era ocupado por artigos escritos pelos próprios alunos. Não eram matérias jornalísticas, eram pura opinião. Eu escrevia regularmente, mas nem sempre os meus artigos eram publicados. Como havia uma limitação de espaço (o jornal era impresso, não havia internet), os editores escolhiam o que seria publicado e o que seria jogado fora. Qual era o critério? Qualquer que fosse, era uma prerrogativa do Centro Acadêmico, cujos diretores eram eleitos pelo voto dos próprios alunos. Eles tinham legitimidade para escolher o que bem entendessem. Não estava satisfeito? Simples: criasse o seu próprio jornal.

TVs, rádios e jornais já têm outra lógica: não são cartas dos leitores que são publicadas, mas matérias escritas por jornalistas profissionais. No entanto, o critério editorial continua sendo dado por quem tem legitimidade para tal: o dono do veículo de comunicação. Não está satisfeito? Faça o seu próprio jornal ou TV!

As redes sociais são mais parecidas com o jornalzinho do Centro Acadêmico do que com os veículos tradicionais de imprensa. Com uma diferença fundamental: não há editor. Tudo o que você coloca é publicado em seu mural. Cada indivíduo passa a ter o seu próprio jornal. Aquela história de fazer o próprio jornal caso não estivesse satisfeito tornou-se realidade!

Mais ou menos.

Há um editor. Na verdade, há dois: um implícito e outro explícito.

O editor implícito é o algoritmo. Você até pode colocar o que quiser em sua timeline, mas nada garante que outros irão ver. Tudo depende do tal “algoritmo”. De que adianta você poder falar o que quiser em uma sala vazia? A comunicação somente ocorre quando há um receptor. Se o poderoso algoritmo decidir que ninguém vai ouvir o que você tem a dizer, nada feito.

Mas o que nos interessa mais de perto aqui é o editor explícito. As redes sociais contam com regras. As regras do Facebook, por exemplo, estão todas aqui. Não se comportou conforme essas regras, está fora da comunidade e impedido de usar a rede social para divulgar suas ideias. Na verdade, ocorre aqui o que ocorre em qualquer jogo com regras: existem as regras gerais e existe o árbitro que aplica as regras ao caso concreto. Tanto as regras quanto o árbitro são de responsabilidade do Facebook, aka, Mark Zuckerberg. Zucka, para os íntimos.

A rigor, Zucka nem precisaria elaborar regras. Ele tem o poder de tirar e colocar o que ele quiser, porque a rede é dele. A legitimidade, que no caso do jornalzinho do Centro Acadêmico era dada pela eleição dos membros da diretoria, no caso do FB é dado pela propriedade: Zucka, assim como os donos dos veículos de comunicação, é o dono, é ele quem define o padrão editorial. Ou, no caso, quem publica ou deixa de publicar.

Mas, se é assim, porque raios Zucka perdeu seu precioso tempo para elaborar regras, e emprega milhares de pessoas para servirem como juízes na aplicação dessas regras? Acredito que seja por uma questão de exercício de “soft power”. Os pais em casa têm o poder de determinar as regras. Nem por isso essas regras são aleatórias e aplicadas sem critério. Para o bem do relacionamento entre pais e filhos, ou entre a rede e seus usuários, é bom que haja critérios minimamente conhecidos e que façam algum sentido.

Tudo isso é mais ou menos aceitável quando se trata de indivíduos falando de cachorros, ou de doenças ou de religião. A coisa muda de patamar, no entanto, quando se trata da esfera política. Neste caso, estamos tratando do pacto social em torno do exercício do poder. A interferência na vida das pessoas é potencializada. Quando um indivíduo fala sobre política, está influenciando o potencial voto de outros, além de poder incitar comportamentos que atacam as bases mesmas do regime político. Mas o alcance desse indivíduo é limitado pelo tamanho de sua rede de relacionamentos e pelo algoritmo. No entanto, quando se trata de um agente político de uma certa importância, essa influência passa a ser mais decisiva.

O que dizer, então, da influência do presidente dos Estados Unidos da América? Se fosse apenas a influência institucional do cargo, já seria muito. Mas, no caso, trata-se de um líder popular, com influência sobre milhões de seguidores, não em razão de seu cargo, mas de seu carisma e de sua mensagem. Quando um líder desse porte usa as redes sociais para atacar as bases mesmas do regime político, o papel desse “mural neutro” passa a ser questionado.

Antes de avançar, vamos parar um pouco para observar mais detidamente este fenômeno. Antes do advento das redes sociais, o que tínhamos? TVs, jornais, revistas e outros meios de comunicação dominados pelos seus respectivos editores. No nível pessoal, a liberdade de expressão era exercida em círculos muito limitados: a sua opinião era conhecida por algumas poucas pessoas, às quais você tinha acesso pessoalmente. Se você quisesse alargar este círculo, precisaria cavar uma vaga em algum meio de comunicação ou escrever um livro. Nestes dois casos, ficaria submetido ao critério do editor e, mais importante, ao alcance de cada um desses meios.

Com o advento da popularização da internet, abriu-se um mundo de possibilidades. Blogs se popularizaram, cada um podendo se tornar o seu próprio editor. Mas nada é tão simples, não é mesmo? Quem já tentou escrever seu próprio blog conhece as dificuldades técnicas e o esforço para ser descoberto na rede. Não é nada fácil.

As redes sociais vieram para facilitar esse trabalho. Basta criar uma conta e sair publicando! Simples, rápido e funcional. O problema de ser descoberto é endereçado pela interação com outros membros da rede: se seu conteúdo tem valor, será elogiado (curtido) e compartilhado, através de ferramentas disponibilizadas pela própria rede. Está criado o ecossistema que permite que qualquer um aumente o alcance de suas ideias. É o nirvana da liberdade de expressão.

Claro que a criação desse “nirvana” supõe o investimento de milhões de dólares, além de envolver alguns dos mais brilhantes cérebros do Vale do Silício. Ou seja, não é de graça. E, como sabemos que não há almoço de graça, esse nirvana vem com um preço. O preço mais óbvio é a utilização dos dados dos usuários para fins de publicidade. Mas isso não é o objeto deste artigo. Um preço menos óbvio apareceu agora: o poder do Zucka de decidir quem pode e quem não pode publicar em sua rede.

Fiz esta pequena digressão para chamar a atenção para o fato de que, se temos redes sociais e podemos usufruir de seus benefícios, é porque muito dinheiro e inteligência foi investido nisso. Nada mais natural que se cobre o preço por esse trabalho, e Zucka tem todo o direito de fazê-lo. Ponto.

A questão ganha uma complexidade inédita porque imbrica o direito do Zucka de editar a sua própria rede e a questão do regime político, fruto de um pacto social. Como disse a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, “a liberdade de expressão é um direito fundamental de vital importância, que até pode ser restringido, mas somente de acordo com leis e dentro de um quadro definido pelo legislador” (grifo meu). Ou seja, Merkel considera que a liberdade de expressão pode sim ser limitada, mas é o próprio regime que deve definir isso, e não uma empresa privada.

O interessante é que este tipo de colocação não se aplica a outros meios de comunicação. Digamos que Frau Merkel quisesse publicar um artigo em um jornal alemão mas, por algum motivo, este jornal recusasse a publicá-lo. Não imagino Merkel afirmando que o jornal deveria obedecer um lei que definisse o que pode ou não pode ser publicado no jornal. Isto seria censura, nem mais nem menos.

Ora, se a ação estatal sobre a propriedade privada da comunicação é normalmente considerada censura, porque Merkel, uma democrata de quatro costados, defende que uma lei deve reger o que Zucka pode ou não pode deixar publicar em sua rede? Onde está a diferença?

O poder das redes sociais

Anteriormente, eu havia dito que o jornal difere de uma rede social por ter seu conteúdo produzido por jornalistas profissionais. Isso é assim, mas um jornal é mais do que isso. Existem as colunas de jornalistas ou personalidades. Neste caso, o jornal funciona como o Facebook: quando um jornal publica um artigo de um colunista, este artigo costuma ser de responsabilidade deste colunista, “não refletindo a opinião deste jornal”, como normalmente está escrito ao final do artigo. Se não estiver satisfeito, o editor do jornal pode dispensar o colunista, mas não pode influenciar o conteúdo do que é produzido. Há pouco tivemos o caso envolvendo Monica De Bolle. A economista foi dispensada do papel de colunista do Estadão, por algum motivo particular ao editor do jornal e que não foi divulgado. Não há um conjunto de regras públicas sobre o que pode e o que não pode publicar, como no caso do Facebook. Trata-se de uma decisão discricionária do jornal. A ninguém ocorre dizer que houve cerceamento da liberdade de expressão da economista, que pode continuar falando por outros meios.

No caso das redes sociais, isso não é verdade. Mesmo para a mais poderosa personalidade do planeta, o presidente dos EUA, não há alternativas à altura para que continue falando para os seus seguidores. Neste caso, houve uma efetiva limitação da sua liberdade de expressão.

A rigor, não existe diferença conceitual entre um jornal dispensar uma colunista e uma rede social bloquear uma determinada pessoa. Eu, pelo menos, não consigo identificar. O que existe é uma diferença de tamanho e potência. O maior jornal do mundo, o Yomiuri Shimbum, tem 9,1 milhões de exemplares circulando diariamente. Nos EUA, o maior jornal é o USA Today, com circulação diária de 4,1 milhões de exemplares. Bem, o Facebook tem nada menos que 2 BILHÕES de usuários. No Brasil, são 130 milhões, contra uma audiência média do Jornal Nacional, o mais popular do país, de aproximadamente 25 milhões de telespectadores (considerando audiência de 35 pontos e 700 mil pessoas por ponto).

O poder muda o conceito? Zucka agora está pagando o preço por ter criado algo tão grande e poderoso? Em que circunstâncias deve haver uma regulamentação estatal para a liberdade de o empreendedor decidir o que é mais conveniente para o seu negócio? Estas perguntas, para mim, ainda estão em aberto. O fato é que, quando estamos lidando com os fundamentos mesmo do regime político vigente, o encontro de um imenso poder de comunicação com o maior poder humano, que é o poder político, traz consequências imprevisíveis. Ainda muito se escreverá a respeito.

À guisa de conclusão

Resumindo o que vimos até aqui:

  1. Qualquer regime político lutará para manter as suas bases intactas, mesmo o regime democrático.
  2. Donald Trump desafiou as bases da democracia americana e, por extensão, do modelo de democracia liberal representativa, que é o regime político vigente nas principais potências mundiais.
  3. A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Antes, é limitado pelo direito dos outros de não terem suas vidas ameaçadas. É limitado também pelas regras do regime político vigente.
  4. Redes sociais são propriedade privada, e podem editar o que quiserem. No entanto, seu imenso poder de comunicação, inigualável na história, pode trazer consequências imprevisíveis para os regimes políticos, arena, por natureza, pública.

Enfim, desculpem-me novamente pela extensão do artigo e pela falta de uma conclusão “preto no branco”. Como disse, meu objetivo era mais ajudar a pensar do que defender um determinado ponto de vista. Espero tê-lo alcançado.

O ‘poder’ das redes

Quando Eugênio Bucci fala, eu paro para ouvir. Normalmente, sua argumentação me convence do ponto exatamente oposto. Mais uma vez, não saí decepcionado.

Como era de se esperar, Bucci amou o documentário O Dilema das Redes (eu ia usar outra palavra para descrever a reação do colunista, mas há crianças na sala). O curioso em sua crítica é o foco nas consequências políticas e não de consumo. Digo curioso porque, sendo professor da área de comunicação, esperaria uma análise sobre a manipulação do consumo. Nem uma linha a respeito, o que já nos diz muita coisa.

O colunista envereda pelas “ameaças à democracia” representadas pelas redes sociais (destaco os dois principais trechos abaixo). Infelizmente, o raciocínio do colunista sofre de três falhas lógicas graves.

A primeira é assumir que as redes são as responsáveis pela ascensão de líderes populistas que destroem a democracia por dentro. Na medida em que eu ia lendo, vozes na minha cabeça iam soprando: “Hitler, Mussolini, Chavez”. Líderes que foram eleitos sem as redes e destruíram as democracias de seus países por dentro. Isso sem contar outros golpes na democracia que não passaram por eleições mas que, mesmo assim, tiveram apoio popular (todo golpe tem apoio popular, não sai do nada): Getúlio, Fidel, os militares de 64. Enfim, atribuir às redes um fenômeno generalizado no tempo e no espaço é, para dizer o mínimo, uma falha lógica.

A segunda falha decorre da primeira: se as redes serviram para “um lado”, porque não serviriam para o “outro lado”? As redes são território neutro, a não ser que se acuse Zuckerberg de fazer campanha para Bolsonaro, mas a esse ponto (ainda) não chegou o colunista. Sendo território neutro, podem ser usadas pelo “lado do bem” igualmente. Bucci contrapõe a mídia tradicional, que estaria ao lado do “bem racional” às redes, que estariam a serviço do “mal irracional”. Ora, isso parece-me mais desculpa de perdedor. Primeiro, porque o monopólio da mídia tradicional não impediu a ascensão de líderes populistas e ditadores ao longo de décadas e no mundo inteiro. E, segundo, as redes estão à disposição de todos, inclusive dos monopolistas do bem, entre os quais se auto-alinha o articulista. Isso nos leva à terceira falha do raciocínio.

A terceira falha lógica da argumentação é óbvia: e se o vencedor da próxima eleição for o Luciano Huck? Ou o Felipe Neto? (Desculpem-me, estou só estressando o argumento). Neste caso, pessoas que sabem usar as redes a seu favor. Bucci virá a público para denunciar a manipulação das redes sociais? Ou comemorará o fato de as redes sociais terem ajudado a eleger candidatos fofos?

No fundo, todo esse barulho em torno das redes sociais se dá por conta das eleições de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil. Se Clinton e Haddad fossem os presidentes hoje, esse assunto teria atenção mínima, se tivesse alguma. Esse artigo de Eugênio Bucci é prova cabal desse ponto. Afinal, ninguém está nem aí para a manipulação do consumo. Mas a coisa foi para o lado político, que desperta paixões. Esse é o problema.

O falso dilema das redes

Está bombando nas redes o documentário da Netflix “O dilema das redes”, onde ex-empregados de empresas de tecnologia (Google, Facebook e Twitter) atacam o modelo de negócios dessas empresas.

Em resumo, é o seguinte: essas empresas usam ferramentas de inteligência artificial para maximizar o efeito da publicidade. São empresas que vivem da publicidade e, portanto, ganham mais quanto mais cliques seus anúncios recebem.

O número de cliques é diretamente proporcional a dois fatores: tempo de exposição e segmentação precisa. Quanto mais longo for o tempo em que o indivíduo fica exposto ao software, e quanto mais certeira for a segmentação, maior a chance de um determinado anúncio ganhar um clique.

Qual a novidade? Por que o buzz a respeito do assunto?

A publicidade sempre existiu, desde que o capitalismo de consumo de massa se estabeleceu entre nós. As técnicas de publicidade evoluíram com o tempo, basta comparar anúncios de algumas décadas atrás com os atuais.

Também a segmentação evoluiu. Revistas e jornais são oferecidos para os anunciantes com a definição de seus público-alvo. Malas-diretas chegam (chegavam) nas casas das pessoas com determinado perfil. Lojas fazem promoções entre seus clientes de acordo com aquilo que compraram.

As redes sociais (vamos chamar assim, embora o Google e a Amazon não o sejam) levaram a segmentação ao estado da arte, ao usar Big Data para identificar os seus usuários. O que você escreve em um e-mail, as páginas que você visita, o que você comprou um dia, tudo alimenta algoritmos de inteligência artificial, procurando adivinhar a sua próxima necessidade. Isso é bom ou ruim?

Isso não é bom nem ruim. Isso é técnica de publicidade, como sempre foi. Claro, há os que acham a publicidade um instrumento do demônio, por incitar o consumismo. Se você é uma dessas pessoas, então o problema não são as redes sociais, o problema é a publicidade em si. Se você, por outro lado, entende que a publicidade é a alma do capitalismo, então deveria aceitar numa boa a sua evolução em direção a uma maior efetividade.

Mas há a questão da privacidade. Uma coisa é você assinar um jornal ou uma revista com anúncios. Outra bem diferente é um software de inteligência artificial “roubar” os seus dados e comercializá-los.

Aí que está o ponto. Acho que hoje nem o mais ingênuo dos usuários pensa que o seu uso das redes sociais não gera dados que serão usados para caçar cliques. As pessoas usam as redes sociais “sem pagar nada”. Mas, como já dizia Milton Friedman, não existe almoço de graça. Portanto, o uso dos dados pessoais é o preço cobrado para usar as redes sociais. Se a pessoa não está disposta a pagar este preço, não deveria usar. Ponto. Revoltar-se contra o modelo de negócios das redes sociais é inútil. Esperar por uma regulamentação governamental, também. No limite, se a regulamentação realmente coibir o uso de dados pessoais para segmentação da publicidade, o negócio das redes sociais acaba. E aqueles que não se importam de receber publicidade segmentada ficarão sem o serviço.

Pergunta: quanto você pagaria por uma assinatura mensal do Google ou do Facebook para não ter seus dados comercializados? Haveria assinantes suficientes para pagar a conta? Jornais e revistas cobram assinatura e nem por isso deixam de ter anúncios. Qual teria que ser o valor da assinatura para evitar a necessidade de anúncios?

O último ponto, e que reputo o mais importante, é o vício. Acho que este é o ponto nevrálgico da questão, mais ainda do que a privacidade dos dados. Mas este não é um problema apenas das redes sociais. Todos os veículos de comunicação trabalham arduamente para manter a audiência. Procuram usar técnicas para prender o usuário o maior tempo possível diante da tela ou do papel. Não é diferente com as redes sociais. Isso é inerente a qualquer mídia que trabalha com anunciantes.

A diferença, neste caso, está na acessibilidade. O problema é que as redes sociais estão disponíveis nos celulares. E o celular está perto de você 100% do seu tempo. Este é o real problema. Na verdade, se precisássemos sentar na frente do computador para navegar, a coisa não seria muito diferente da TV, ainda que existam pessoas viciadas em TV. Mas o fato de carregar o celular conosco o tempo inteiro faz com que o vício se torne muito mais fácil. É como deixar um copo de pinga 100% do tempo ao alcance de um alcoólatra.

Este é um problema sério e que merece a nossa atenção. Não tem muito o que se possa fazer aqui, a não ser apelar para o autocontrole. Alguns truques ajudam, como, por exemplo, desligar as notificações. De vez em quando também é útil adotar períodos sabáticos, em que nos afastamos completamente das redes. Na verdade, do celular. Refeições em família sem os respectivos celulares também ajudam muito. Tudo isso é tanto mais difícil quanto mais estivermos viciados. O que torna a coisa ainda mais importante.

Note que o problema não são as “redes sociais”. Assim como o álcool, as redes sociais são bem úteis quando usadas com moderação. A comparação com cocaína é algo completamente desproporcional e inadequado. Não há reações químicas no cérebro que nos tornam escravos físicos do “vício em redes sociais”. Acredite, não temos “síndrome de abstinência” quando deixamos de usar as redes sociais. A comparação com o álcool ou com o cigarro é um pouco mais próximo da realidade. É possível usar com moderação.

Por fim, considerações sobre “ameaças à democracia” e “discursos de ódio” supostamente facilitadas pelas redes sociais são apenas mais uma forma de discurso político. Vivemos, no século XX, muitas “ameaças à democracia” e “discursos de ódio” sem o auxílio das redes sociais. Trata-se de uma confusão, proposital ou não, entre meio e mensagem. Acabar com as redes sociais não acabará com as mensagens de ódio. Elas apenas mudarão de meio. Culpar as redes sociais por supostos ataques à democracia é um meio fácil de deslocar a culpa da própria incompetência em transmitir uma mensagem alternativa que ganhe mentes e corações. Afinal, as redes sociais estão aí para todos, basta usar.

PS.: não é à toa que a Netflix tenha produzido este documentário. Ela também está na briga pela sua audiência, não se esqueça. E cada minuto a menos no Facebook significará potencialmente um minuto a mais na Netflix. Não tem santo nessa história. Todos estão em busca do seu olhar.

Depoimento histórico

Os mais antigos vão lembrar: nos anos 90, a Microsoft foi acusada de “práticas monopolistas” por entregar o seu navegador Explorer junto com o Windows. Na época, Yahoo e Netscape brigavam com o Explorer palmo a palmo por esse mercado. Hoje, mais de 20 anos depois, o Chrome, que nem sequer existia na época, domina esse mercado. Yahoo e Netscape são sombras do passado e o Explorer foi substituído pelo Edge na 342a tentativa da Microsoft de destronar o navegador do Google.

Curiosamente, a Microsoft não estava entre os depoentes do “depoimento histórico”, na chamada grandiloquente do jornal. E é curioso porque o seu sistema operacional Windows e seu pacote Office detém uma considerável fatia dos seus respectivos mercados. O que nos faz concluir que a preocupação dos nobres parlamentares não está em supostas práticas monopolistas, mas em algum outro lugar. Mas não é esse o objetivo deste post.

O ponto que quero fazer é que não há setor econômico mais aberto à competição do que o de tecnologia. Claro, isso não significa que qualquer Zé Mané pode competir com o Google desde a garagem da sua casa. São precisos milhões, ou até bilhões de dólares de investimentos até chegar lá. Meu ponto é que qualquer um com uma boa ideia e capacidade de convencimento tem à sua disposição bilhões de dólares para alavancar a sua ideia, em um mercado de capitais ávido por encontrar o próximo Facebook ou o próximo Google. Todos esses gigantes nasceram na garagem de casa ou no dormitório da universidade, e desafiaram outros gigantes da tecnologia.

Este mercado é absolutamente aberto porque está ao alcance dos dedos dos usuários. Ninguém, absolutamente ninguém, impede que você teste outros navegadores, outras redes sociais, outros serviços de entrega. Os atuais líderes de mercado precisam suar continuamente a camisa para manter a experiência do usuário em alto nível, pois sabem que um competidor pode rouba-lo a qualquer momento. Eles próprios fizeram isso.

Lembro como se fosse hoje. Era 1999, estava eu trabalhando no escritório, quando veio um colega e digitou no meu computador “Google.com”. Apareceu uma tela branca, com apenas uma linha no meio para digitar a busca (basicamente o que se tem ainda hoje). Um choque para quem, como eu, estava acostumado com a aparência carnavalesca da página do Yahoo. Aquilo me cativou imediatamente. Meu amigo falou: “preste atenção, esse é o futuro”. Profético.

O Google conquistou o mercado com um produto melhor. Assim como o Facebook desbancou o Orkut. E, daqui a 20 anos, outras empresas estarão no lugar dessas. No final do dia, é o consumidor que decide quem vive e quem morre, como em uma arena romana.

O tal do “depoimento histórico” nada mais foi do que o tributo que a genialidade precisa pagar para a mediocridade. Um dia de trabalho perdido na vida desses empresários, que poderia ter sido empregado para agregar valor aos consumidores. Ayn Rand na veia.

Popularidade nas redes

10 milhões no Facebook e 6 milhões no Twitter é bastante gente. Mas é natural: afinal, trata-se de um presidente da república, e não de um presidente qualquer, mas de um com alta popularidade e que construiu sua campanha eleitoral (e vem governando) através das redes sociais.

Mas esses números são colocados em contexto quando comparados aos de Dilma Rousseff, uma ex-presidente que saiu escorraçada do Palácio do Planalto, com popularidade no nível das Fossas Marianas, fora do poder há mais de 3 anos, que obteve um vexaminoso 4o lugar para a eleição do Senado em MG, e sem relevância alguma no cenário político atual.

Com esse curriulum, Dilma tem 3 milhões de seguidores no Facebook e 6 milhões de seguidores no Twitter.

Ou seja, se o presidente quer mostrar seus números nas redes sociais como uma demonstração de sua popularidade, precisará pensar em outro argumento.

A campanha do WhatsApp

Ontem participei de um happy hour especial, em que reencontrei velhos amigos para comemorar 30 anos de formatura na Poli. Alguns eu não via há 30 anos, desde que nos formamos!

Mas não é sobre velhas lembranças que quero falar. É sobre novas tecnologias.

Já havia participado de encontros anteriores com minha turma. Sempre meia dúzia de gatos pingados. Ontem, havia mais de 30 pessoas, fora outros tantos que não vieram, mas que estavam no grupo do WhatsApp formado para este encontro.

WhatsApp. Esta foi a tecnologia que permitiu o sucesso desse encontro.

Em determinado momento durante o encontro, alguém perguntou quem havia organizado. A resposta foi “ninguém”. As pessoas foram trocando ideias, em determinado momento bateu-se o martelo no lugar, alguém reservou e pronto! O encontro aconteceu.

De fato, aquele grupo havia sido iniciado por dois colegas, que inicialmente agregaram seus próprios contatos. A partir daí, o grupo cresceu com a adição de novos contatos a partir dos contatos iniciais, até atingir quase 80% da turma. Sem uma organização central.

Ao contrário do Facebook, em que o Zucka decide o que eu vejo ou não, no WhatsApp o usuário é pleno senhor de sua timeline. Ele escolhe de quais grupos quer participar e a formação dos grupos se dá de maneira orgânica. Grupos formados “de cima para baixo”, com uma organização central, simplesmente não funcionam.

O WhatsApp foi uma arma essencial nessas eleições. Bolsonaro conseguiu tamanho sucesso usando essa tecnologia, que pôde ultrapassar as evidentes limitações de sua campanha: quase zero de tempo de TV, de estrutura partidária, de fundo partidário. Bolsonaro tinha o que os outros candidatos dariam o dedinho da mão para ter: uma militância aguerrida, disposta a fazer propaganda de sua candidatura. Se alguém duvida da existência dessa militância, é porque não foi nas manifestações pró-impeachment em 2015/2016.

Mas não adianta ter militância se não houver os meios. Antigamente, essa militância teria que passar em comitês e pegar materiais de campanha (folhetos, santinhos) para distribuir. Seria claramente insuficiente. O WhatsApp permitiu fazer campanha sem sair de casa e de modo muito mais rico, com o auxílio de vídeos, impossíveis de serem distribuídos em semáforos.

Veja, o WhatsApp não dispensa a existência de comitês. Ainda é necessário que uma organização central produza os materiais que serão distribuídos. Mas a distribuição em si é feita através desses grupos formados organicamente, de pessoas dispostas a fazer campanha. Não estou aqui dizendo que não possa haver spams. Mas a eficácia dessas mensagens não desejadas é infinitamente menor do que aquela que vem de alguém conhecido em um grupo formado voluntariamente.

– Ah, mas o start do processo se dá através de uma fonte não confiável. Depois que essa mensagem é repassada pela primeira vez, passa a circular nos grupos de maneira confiável.

O que é uma fonte “confiável”? Ainda mais em uma campanha eleitoral? Parece-me óbvio que as pessoas sabem que aquele material que estão repassando não foi “criado” pela “minha tia”. Alguém deve ter criado inicialmente, todo mundo sabe disso. Além disso, parece-me também que ninguém é idiota o suficiente para acreditar em uma mensagem só porque foi a tia que mandou. “Nossa, aqui tá dizendo que a terra é plana. Como foi minha tia que mandou, deve ser verdade”. As pessoas acreditam no que querem acreditar. Mensagens que reforçam seus argumentos e preconceitos são dignas de credibilidade, mensagens que vão na direção contrária são descartadas, mesmo vindo do papa.

A grande revolução do WhatsApp foi permitir alavancar uma ideia de maneira rápida e descentralizada. Já li alguns artigos sobre a influência das redes sociais em debates e a coisa é sempre centralizada no Facebook e Twitter, onde a timeline e os trend topics podem ser fortemente influenciados por robôs. Sem dúvida isso aconteceu também nessa eleição. No entanto, o que desequilibrou o jogo, no final do dia, foi a existência de uma militância disposta a fazer campanha, tanto a favor de Bolsonaro quanto contra o PT. O WhatsApp foi só o instrumento que permitiu a essa militância ter voz. Robôs podem ser criados por qualquer um. Militância, não.

A influência das ideias sobre as pessoas existe desde que Eva convenceu Adão a comer a maçã, influenciados pelas fake news da serpente. O WhatsApp é só mais uma tecnologia de difusão de ideias, um meio alternativo à mídia tradicional, que também difunde ideias. Talvez seja isso que incomode. Voltaremos a esse assunto.